Este ano já foram deportados 42 emigrantes cabo-verdianos dos Estados Unidos para Cabo Verde, estando ainda pendentes com ordem final de deportação mais 412 casos. Como explica estes números?
O historial das deportações não é de hoje, praticamente desde a independência, sobretudo desde os anos 80, existem deportações dos Estados Unidos, mas as nossas deportações maiores não são dos Estados Unidos. Fala-se muito da questão dos Estados Unidos, mas é sobretudo pelo efeito que tem na comunidade cabo-verdiana que é muito mais unida e agregada. Portanto, não é dos Estados Unidos que há maior número de deportados. Não é nada disso. Desde os anos 80 nós calculamos que tenham sido deportados cerca de 800 cabo-verdianos. Agora a lista de cabo-verdianos já com ordem final de deportação é cerca de 400.
“Nós procuramos negociar com os Estados Unidos um memorando de entendimento – eu conclui o processo, mas começou antes de mim – porque tínhamos chegado a uma situação em que Cabo Verde foi colocado na chamada lista dos países não cooperantes”
O que tem feito a embaixada para estancar essas deportações?
Nós procuramos negociar com os Estados Unidos um memorando de entendimento – eu conclui o processo, mas começou antes de mim – porque tínhamos chegado a uma situação em que Cabo Verde foi colocado na chamada lista dos países não cooperantes. Os Estados Unidos nesta questão de deportação são muito rigorosos e com este presidente [Donald Trump] são mais assertivos, porque para eles a ideia do cumprimento da lei é essencial. Lá fala-se de law enforcement. Portanto, a ideia de que a lei tem que ser cumprida e tem que ser feita cumprir. Ou seja, se as pessoas estão em conflito com a lei deve-se aplicar o que está na lei. E a lei americana, para certos casos, por exemplo, em caso de crimes, depois do cumprimento de pena, você tem que sair do país, porque constitui um perigo para a segurança dos americanos. Há também retorno, quando as pessoas estão numa situação irregular: entraram com visto de seis meses, deixaram passar o visto e estão lá com o visto caducado. Nós, no nosso caso, pelo menos desde que cheguei, as deportações que temos tido, são pela prática de crimes. A lei americana não é diferente das outras, é igual à cabo-verdiana. A nossa lei também diz o mesmo: o estrangeiro que cometa certo tipo de crimes tem como sanção assessória a deportação. Portanto, o repatriamento. É assim também na Europa e praticamente em todos os países e Cabo Verde também tem deportado pessoas de várias nacionalidades, em cumprimento do que está disposto na nossa lei. Portanto, não há como evitar isso. Evitar isso, é não estar em conflito com a lei; é não cometer crimes. Ou ter a nacionalidade americana.
“Alguma sofisticação que às vezes aparece nos crimes em Cabo Verde é, em parte, fruto da circunstância de estarmos a receber pessoas repatriadas dos Estados Unidos e da Europa”
Concretamente, o que tem feito a embaixada para prevenir casos de deportação?
Em relação à deportação em si, o que tentamos fazer foi primeiramente criar um quadro de previsibilidade e que desse tempo às autoridades locais de analisar a situação em cada caso, verificar se se trata efectivamente de um cabo-verdiano, ou não, ter tempo para conhecer esse cabo-verdiano, porque é que ele vem para poder recebê-lo aqui e eventualmente reintegrá-lo. O memorando de entendimento dá isso. Quisemos também prevenir deportações massivas, porque nada impede um país de pegar num grupo de pessoas, meter dentro de um avião, chegar cá e dizer ‘estão cá, são cabo-verdianos e estão no aeroporto’. Nada impede. A convenção sobre a aeronáutica civil diz isso, nenhum país pode recusar receber o seu nacional. A nossa Constituição também diz a mesma coisa: Cabo Verde não pode expulsar um cabo-verdiano. Então, é isso que temos feito e temos conseguido. Ou seja, aplicamos o memorando de entendimento com seriedade. O memorando prevê que a deportação só ocorra depois de o visado ter feito todos os recursos que a lei americana lhe permite e nós temos 30 dias úteis para analisar se é cabo-verdiano ou não, mas a parte americana tem que nos entregar documentos comprovativos da nacionalidade deles. Nós analisamos esses documentos e já rejeitamos casos em que chegamos à conclusão de que não se tratava de um cabo-verdiano. Assim, nós sabemos com antecedência quando é que a pessoa vem e qual o seu itinerário. As autoridades cabo-verdianas sabem com antecedência e sabem também por que crime a pessoa foi deportada. E sabem o histórico da pessoa, na parte que devem saber, nós não sabemos tudo, mas as autoridades da aplicação da lei conhecem o registo criminal da pessoa que é deportada. Agora, nós não podemos ficarmo-nos só por isso, só a receber. Não é muita gente, nós temos meio milhão de pessoas e temos agora uma lista à volta de 400 pessoas. Essa lista é claro que vai mudando, porque entram uns, saem outros, mas digamos que não é um número muito expressivo. Mas para um pequeno país como o nosso, e para pequenas comunidades como as nossas, é expressivo, pode ter um efeito desregulador e sabemos que em alguns casos há problemas de segurança. Alguma sofisticação que às vezes aparece nos crimes em Cabo Verde é, em parte, fruto da circunstância de estarmos a receber pessoas repatriadas dos Estados Unidos e da Europa.
“A lei americana não é diferente das outras, é igual à cabo-verdiana. A nossa lei também diz o mesmo: o estrangeiro que cometa certo tipo de crimes tem como sanção assessória a deportação”
Que medidas deve o governo tomar nesses casos?
No meu entender deve ir no sentido da prevenção, monitoramento e reintegração. Temos de prevenir a começar de Cabo Verde. Quando as pessoas se aplicam para terem um visto para os Estados Unidos, nós devíamos estar a acompanhá-las. Dizê-las que América é uma terra de oportunidades, mas é também uma terra de leis. E quem não cumpre a lei tem que vir. Senão vai correr o risco de quase de certeza ter que regressar e sem dia de voltar. Temos igualmente de prevenir nas nossas próprias comunidades. Certos tipos de situações acabam por conduzir os jovens que saem daqui pequenos a terem conflitos com a lei. Devem prevenir, adquirindo a nacionalidade americana, porque se ele é americano, mesmo que seja também cabo-verdiano não é deportado. Temos que trabalhar mesmo dentro das cadeias, antes de eles saírem, porque saem com uma cultura da cadeia. Portanto, se calhar é preciso conversar com essas pessoas, é preciso trabalhar com elas, dizê-las que há outras oportunidades na vida. Depois, temos também que reintegrá-las quando chegam, de acordo as condições que a gente tem. Elas agora, quando chegam, já não são largadas no aeroporto como pode ter acontecido algumas vezes. Agora, as nossas autoridades sabem quando vêm, vão recebê-las e têm um subsídio monetário inicial. É pouco, mas é aquilo que se paga aqui basicamente a um vulnerável. São entrevistados, sabe-se quais são as capacidades que têm. Porque se tens certas capacidades, podes recomeçar a tua vida aqui. E elas têm uma capacidade: sabem falar inglês. Portanto, podem perfeitamente fazer uma boa vida aqui em Cabo Verde e ter uma actividade que lhes dê rendimentos. Portanto, o país está a fazer o que é possível, porque nós temos um país pobre, temos muita gente vulnerável, mas é preciso não esquecer que são cabo-verdianos que caíram numa situação complicada, por culpa própria, na maior parte das vezes, mas que devem ter uma outra oportunidade. Cabo Verde deve-lhes isso: dar-lhes uma outra oportunidade de se integrarem aqui e trabalharem para este país.
Essa integração pressupõe a criação de um programa que ainda não existe.
Devo dizer-lhe que nós já apresentamos a ideia de um programa ao governo que o colocou na agenda do último conselho de segurança nacional e foi deliberado que se iria avançar com ele. Portanto, tem que ser aprovada uma resolução em sede do conselho de ministros, têm de ser alocados recursos humanos e materiais… De facto, temos que fazer isso, porque se não vamos estar só a receber pessoas que têm que vir e que nós não podemos recusar.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 870 de 01 de Agosto de 2018.