“Só com a educação se tem uma ferramenta fiável de superação da pobreza. O resto é conversa”

PorSara Almeida,13 out 2024 14:37

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Gabriel Fernandes, Reitor da Universidade de Santiago
Gabriel Fernandes, Reitor da Universidade de Santiago

“O esboço da Universidade de Santiago surgiu em 2004, no âmbito de um estudo sobre a oferta formativa e o acesso ao ensino superior na ilha de Santiago”, começa por contar o reitor, Gabriel Fernandes. Esse estudo, continua, revelou grandes disparidades regionais. Constatou-se, por exemplo, que “os estudantes do interior de Santiago pagavam o dobro ou o triplo do que pagava um estudante da Praia para ter acesso ao ensino superior.” E enquanto a capital e o Mindelo contavam já com várias instituições de ensino superior, Santa Catarina e São Salvador do Mundo, com uma população estudantil equivalente à de São Vicente, não tinham nenhuma na sua região.

“Então, na altura, entendemos que fazia todo o sentido que trabalhássemos para reduzir as assimetrias regionais historicamente criadas e que tendiam a cristalizar-se”. Deram-se os primeiros passos para a criação de uma universidade no interior da ilha. Anos depois, em 2008, o projecto concretizou-se e a Universidade de Santiago instalou-se em Assomada. Em 2012, entrou em funcionamento o polo na Praia, polo esse que em 2023 se mudou para novas e modernas instalações. Entretanto, foi implementada a US Virtual que permite cobrir todas as ilhas e marcar presença em vários países.

O caminho feito advém do plano estratégico de desenvolvimento institucional, elaborado em 2008 e que continua em vigor. “Não há discrepância. Estamos a materializar aquilo que idealizamos e que concebemos ab initio”, reitera o reitor.

Em termos de oferta formativa, a Universidade de Santiago continua, também desde a génese, a manter uma centralidade na área da educação, não só no sentido de ter docentes bem formados, como profissionais que possam ser bons docentes. Assim, grande parte dos cursos, na fase inicial, teve uma dupla habilitação. “Formavam-se técnicos, mas também docentes”, uma vez que os cursos eram acompanhados de uma forte vertente pedagógica. Mantendo esse foco na docência, a Universidade de Santiago introduziu também os complementos de licenciatura, bem como várias outras ofertas voltadas para a educação. “São já centenas os docentes que se formaram e que receberam o complemento pedagógico na Universidade de Santiago”, contabiliza.

Além da educação, também a saúde mereceu a aposta da US. Há cerca de 10 anos foi criado o curso de Enfermagem que na sua primeira edição contou com apenas 13 alunos. Não era sustentável, mas a Universidade de Santiago teimou. Levou o curso adiante e no ano seguinte, o panorama mudou. Ainda hoje, é dos cursos mais procurados e um pouco por todas as infra-estruturas de saúde do país e possível encontrar ex-alunos.

Hoje, a Universidade de Santiago atrai também estudantes de diversas partes do mundo, como Portugal, Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Só em 2021, “cerca de 120 estudantes estrangeiros procuraram a nossa instituição”, congratula-se o reitor.

Ao todo, a Universidade de Santiago já terá formado cerca de 1.400 quadros, facto que, para o reitor, apesar dos “múltiplos constrangimentos e desafios” que enfrentam, são um sinal que gera “esperança, conforto e alguma motivação”.

Para este ano académico, a US tem uma oferta formativa composta por 13 cursos de licenciatura e oito mestrados. A Universidade está a lançar ainda um novo programa, o US Diáspora, para jovens que emigraram, e que pretendem continuar os seus estudos.

Que avaliação faz de todo o sistema de ensino cabo-verdiano até à saída da universidade?

Vejo que há uma preocupação do Governo e decisores no sentido de aproximar o sistema educativo cabo-verdiano ao dos países centrais, seguindo os mesmos padrões de qualidade, de exigências. No entanto, entendo que é fundamental trabalhar desde tenra idade, desde o pré-escolar para garantir que as crianças desenvolvam competências culturais, capacidade de interacção e autoconhecimento, alguma dinâmica que os torne cidadãos activos ou os faça sentir como tal, porque, caso contrário, correr o risco de ter bons técnicos e não ter boas pessoas. As competências sociais são cruciais para a própria dinâmica do desenvolvimento social.Quando se tem uma sociedade com bons técnicos, mas más pessoas, há um desencontro tácito, porque dificilmente se é um bom técnico quando se é uma má pessoa. No mundo inteiro, há essa preocupação. Os países que têm tido sucesso ao nível do ensino e da educação, e em que a educação tem alavancado o processo de desenvolvimento social e humano, são países que apostaram nessas competências sociais.

E Cabo Verde aposta?

Em Cabo Verde, entendo que temos esse deficit. Promovemos uma reforma do sistema educativo nos anos 80, em que participei como coordenador geral da formação de professores de ensino básico. Preocupamo-nos bastante com o alargamento do ensino básico e hoje temos um ensino básico obrigatório, universal de oito anos, o que é muito bom. Os indicadores mostram que a taxa de matrícula é elevada, portanto o analfabetismo é bastante reduzido, e nesse sentido tivemos sucesso. Mas, a estrutura curricular deve ser readaptada e adequada à dinâmica social, porque não podemos estar no século XXI com uma política dos anos 80. Não podemos ter desafios elevadíssimos de inserção de Cabo Verde no mundo, com professores cujo perfil está mais adequado ao do século passado. É fundamental que haja um trabalho árduo, integrado, holístico, por forma a que o sistema se adeqúe à dinâmica social e mundial. Se estamos a formar cidadãos do mundo, devemos trabalhar desde a tenra idade para que esse jovem venha a ter habilidades e competências para manter uma interlocução fiável com qualquer um, em qualquer parte do mundo, e possa inserir-se no mercado laboral tanto em Cabo Verde como lá fora. Portanto, há um trabalho a ser feito que possibilite a aproximação do sistema de ensino à realidade social.

No que toca em concreto das universidades, acha que em Cabo Verde tem havido uma massa crítica no desenvolvimento do ensino superior?

Há um trabalho a ser feito, e, por isso, penso que deve haver uma abordagem holística. O que recebemos do ensino básico e secundário condiciona o próprio ensino superior, já que são etapas cumulativas. O que se faz num determinado patamar terá repercussão no patamar subsequente. Isto significa que sem uma visão holística, que cubra o sistema no seu todo, e que assegure a formação do pessoal docente, desde o pré-escolar, dificilmente teremos uma capacidade de resposta de acordo com as exigências do ensino superior, na fase subsequente. Não podemos continuar a ter docentes sem licenciatura a formar pré-universitários, porque esse pré-universitário, tendo o seu percurso estudantil condicionado e, quiçá, maniatado por um professor com deficits estruturais em termos de conhecimento, vai estar também maniatado no ensino superior. Dificilmente vai conseguir superar todas as suas lacunas num lapso de tempo de 4 anos. E os professores só se se formam se houver uma política de formação integrada, forte e altamente consentânea com as exigências do padrão de qualidade que se quer. Nenhum professor em Cabo Verde, com compromissos familiares e o seu estatuto remuneratório, que não é dos melhores, estará em condições de suportar uma formação pós-graduada para, depois, assumir todos os desafios da sua docência. Em qualquer parte do mundo, há políticas fortes, integradas, de formação pós-graduada e formação permanente dos docentes. No Brasil, por exemplo, temos o CAPES [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior], uma fundação, que tem um orçamento de mil milhões de dólares, o orçamento do CNPq - Conselho Nacional para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico - é de 500 milhões de dólares. O orçamento da Fundação para Ciência e Tecnologia (FCT) em Portugal é de 675 milhões de euros. Não podemos alocar recursos de que não dispomos, mas entendo que é fundamental que haja uma alocação proporcional aos recursos de que dispomos. Ou seja, se a nossa capacidade de carga nos permite ir até um determinado nível de investimento, é para irmos. Portugal, por exemplo, no caso da FCT, aloca 0,3% do seu PIB, que é de 200 mil milhões de euros. Se alocássemos 0,1% do nosso PIB, que é de 2 mil milhões, já seria um grande avanço. É fundamental termos docentes formados.

Neste momento, já temos uma boa percentagem de docentes em programas de doutoramento. Quando começamos a Universidade de Santiago, em 2008, muitas instituições tinham 80% de professores apenas com licenciatura. Hoje, isso não acontece. Na Universidade de Santiago, por exemplo, mais de 90% possuem mestrado ou doutoramento, mas isso é fruto de esforços titânicos das próprias instituições. Deveria haver parcerias estratégicas e um entendimento tácito sobre o que se nos impõe fazer, o que permitiria garantir uma formação adequada para os docentes do ensino básico e secundário, com reflexos no ensino superior, e, ao mesmo tempo, garantir que que Cabo Verde esteja em condições de se aproximar dos padrões de qualidade dos países centrais. Sem esse investimento global, holístico e sem esse entendimento tácito sobre o que se impõe fazer para alavancar o sistema de ensino em Cabo Verde, dificilmente chegaremos lá.

Cabo Verde pretende proceder a uma reforma do modelo de financiamento do Ensino Superior. O que essa reforma deveria ter em conta, da parte dos privados?

O financiamento deve ser pensado de forma heterogénea, uma vez que o público estudantil também é heterogéneo. Há famílias em melhores condições financeiras, que podem garantir que seus filhos estudem tanto aqui em Cabo Verde como lá fora, mas também há aquelas que vivem em situação de vulnerabilidade socioeconómica. Não podemos esquecer que na ilha de Santiago, principalmente no norte de Santiago, há concelhos onde a pobreza atinge 56% da população. Portanto, nesses concelhos, dificilmente as famílias conseguem suportar a formação. Dado esse cenário, o sistema de financiamento deve levar em consideração a peculiaridade socioeconómica das famílias, criando pacotes que levem em conta não apenas no mérito académico, que deve ser reconhecido, mas também a condição socioeconómica das famílias. Portanto, esses mecanismos devem ser adicionados de forma diferenciada e levando em consideração situações concretas dos que demandam o ensino superior. Entendo que também deve haver mecanismos de compensação fiscal. Por exemplo, há benefícios fiscais

que alguns países adoptam para famílias cujos filhos estão a estudar, como o abono de família até aos 24 anos. Além disso, garantir que as zonas mais recônditas possam ser abrangidas pelo ensino superior e possam captar jovens a partir de benefícios concretos. Em Portugal, por exemplo, existe o Programa + Superior que incentiva os jovens a estudarem nas cidades mais distantes, que estão a sofrer com o despovoamento, garantindo alguma centralidade a essas localidades. Como isso não se provocaria tanta pressão nos centros urbanos e, ao mesmo tempo, estar-se-ia a criar condições para o desenvolvimento equilibrado dessas regiões, evitando assimetrias que tendem a cristalizar-se. Há países que adoptaram sistemas de financiamento para garantir aos jovens em instituições privadas prossigam os seus estudos, sem serem obrigados a abandoná-los por problemas financeiros. No Brasil existe o FIES - Programa de Financiamento do Ensino Superior – para todos os jovens e o Programa Prouni - Universidade para todos, em que o jovem, essencialmente os que estudam no privado, porque o ensino superior público é gratuito, tem um financiamento de entre 50% e 100%, com garantia dada pelo Estado, e taxa de juros zero. Esse jovem só vai começar a pagar o empréstimo contraído depois de se formar e começar a trabalhar. Esses mecanismos já foram testados em outros países e podem ser adaptados à realidade cabo-verdiana, de forma a se garantir que milhares e milhares de jovens não fiquem excluídos desse importante recurso de emancipação, de mobilidade e de ascensão social. Porque só com a educação é que se consegue ultrapassar a tal reprodução intergeracional de desigualdades. Só com a educação é que se tem uma ferramenta fiável de superação da pobreza. Quanto ao resto é conversa. Não há desenvolvimento sem educação. Nenhum país desenvolvido, nenhum país de rápido crescimento foi negligente com a educação. Países como Estados Unidos, Alemanha, Japão apostaram fortemente na educação. Coreia do Sul, Irlanda e Finlândia, que há 50 anos eram pobres, apostaram como chave para o desenvolvimento e progresso. A aposta é na educação. Não há nenhum outro caminho.

Voltando à Universidade de Santiago em particular. Como colabora para o desenvolvimento do país. Como alinha, por exemplo, as suas ofertas formativas com as necessidades de Cabo Verde?

Temos estado a trabalhar no sentido de compatibilizar o anseio de formação ou a escolha do estudante com aquilo que consideramos ser estratégico para o país. Portanto, não levamos em consideração apenas a lógica mercadológica, não é o mercado que nos norteia, mas também não o desconsideramos, nem desconsideramos o sujeito que quer ter uma formação, porque a formação é para o sujeito. Nós não vamos “impingir” uma formação. Tentamos compatibilizar e ver também o que para nós, Universidade de Santiago, é estratégico. A US, quando foi criada, garantiu especial centralidade à área da educação, porque entendíamos, e continuamos a entender, que é fundamental termos docentes bem formados e termos profissionais que possam ser docentes. Então, grande parte dos nossos cursos, na fase inicial, tinham a chamada dupla habilitação, ou seja, formavam-se técnicos, mas também docentes. Um sociólogo era licenciado em Sociologia, mas também licenciado para o ensino de Sociologia. O mesmo para História, Estudos Franceses, Geografia e Ordenamento do Território, e assim por diante. Em todos esses cursos havia a possibilidade de um complemento pedagógico, com pelo menos nove cadeiras nessa área, para que o técnico também pudesse leccionar e sem prejudicar, por assim dizer, o sistema.Parte superior do formulário

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Depois, entramos com o complemento de licenciatura e com várias ofertas voltadas para a educação, porque entendemos como eu disse que a Educação devia ter uma centralidade forte. Além disso, apostamos também na área da saúde. O nosso curso de enfermagem começou com apenas 13 alunos, na primeira edição. Não era sustentável, mantivemos o curso por entender a sua importância estratégica. A nossa lógica é que um curso que seja sustentável pode ajudar a viabilizar outro que não o seja, mas que é estratégico.

Estando sediados numa zona mais agrícola, a oferta na área da agronomia e afins não seria uma boa opção?

Paradoxalmente, e é por isso que digo que é fundamental compatibilizarmos a nossa visão estratégica com a escolha dos que demandam o ensino superior, o campo não é muito apelativo para quem lá vive. Abrir um curso de agronomia na expectativa de reter jovens filhos de camponeses é quase um contra-senso, porque o campo é visto como um lugar de penúria, dependente da chuva, dependente de oscilações conjunturais que não lhe permitem ter segurança em relação ao seu futuro. Os jovens buscam outras formações, outras paragens que ofereçam uma saída para esse cenário, que é visto como algo penoso. Portanto, abrimos cursos voltados para o meio rural, mas não tivemos sucesso porque os jovens não aderiram a essas ofertas.

Isso leva-nos a outra pergunta: os estudantes querem? Quais são os cursos mais procurados?

Temos pacotes diferenciados que recobrem vários campos, distribuídos em quatro departamentos, cada um dos quais com vocação específica para áreas concretas. Temos o departamento de Ciências Jurídicas e Sociais, por exemplo, que inclui o curso de Direito, que continua a ser muito procurado e permite uma inserção socio-laboral multifacetada e uma possibilidade grande de o candidato escolher a sua saída profissional. Gestão de Empresas é outro curso bastante procurado, relacionado com a dinâmica empresarial e a possibilidade de auto-emprego. São cursos, alguns dos quais voltados para o mercado, outros dos quais ligados a profissões liberais, que permitem que o jovem veja que há alguma possibilidade de ascender ou conduzir a sua própria vida, sem ficar adstrito ao Estado ou a empresas. Os cursos em que o jovem vê que o único empregador será o Estado, são cursos que tendem a sofrer alguma sangria, porque quando o Estado não contrata, e há um curso em que o jovem irá para o Estado, esse jovem faz a escolha racional. Portanto, faz uma escolha, mas a partir de indicadores e sinais concretos. Procuramos esse equilíbrio. Temos cursos que remetem o jovem para o mercado, temos cursos que remetem o jovem para o empreendedorismo, para a capacidade de conduzir os seus próprios negócios, e temos cursos que levam em consideração a necessidade de uma espécie de mobilidade de elites, de mobilidade de quadros. Sabemos que uma sociedade dinâmica, um mercado dinâmico, vai levar a uma rotatividade quase que permanente e possibilidade de inserção.

Ouvem-se queixas da “fuga” dos estudantes que preferem fazer a formação superior no estrangeiro, e que contam inclusive com o apoio de entidades públicas, como Câmaras Municipais para tal. Como encara esse fenómeno?

Em Cabo Verde, tivemos dois recursos fundamentais da nossa afirmação enquanto povo: a educação e a emigração. Entendo que é natural o cabo-verdiano querer emigrar. Estamos num país pequeno, isolado, pobre, é fundamental que levemos em consideração a necessidade de buscarmos, em outras paragens, aquilo que não conseguimos receber cá. É natural. Mas não concebo como sendo natural que as entidades públicas se envolvam no recrutamento de jovens para estudar lá fora, que sirvam de mediadores das instituições, muitas das quais em situação periclitante e que não oferecem a qualidade que temos aqui. Essas entidades envolvem-se, recrutam, regimentam parceiros para canalizar os jovens para fora. Isso é pernicioso, porque perturba o funcionamento das instituições lá fora, fragiliza as instituições cá dentro e boicota aquilo que é toda a aposta no ensino em Cabo Verde. O Estado, que aloca tantos recursos para promover o ensino básico e secundário, que investe tanto nos seus jovens, vai ficar desguarnecido, sem quadros para desenvolver um país, quadros esses que se tornam mão de obra barata no espaço de acolhimento. Portanto, há uma discrepância que tem a ver com uma desatenção política ou com um imediatismo altamente nefasto para o futuro de qualquer nação. Quando se entra nessas jogadas eleitoralistas, porque convém à família pobre ter o filho emigrado - mas não convém ao país ter uma sangria permanente dos seus quadros – é altamente preocupante. As próprias instituições, que investem tanto para terem uma formação de qualidade, vêm-se esvaziadas do seu principal insumo, que são os estudantes. Quando uma instituição como a Universidade de Santiago, que tem cerca de 80 funcionários a tempo inteiro, e 60 a tempo parcial, ou seja que oferece 140 empregos fixos e mais outros 150 variáveis, uma instituição que labuta no quotidiano para garantir investimentos sólidos, ter um ensino digno, vê o outro, que devia ser parceiro, sendo parceiro de uma instituição que não tem nenhum compromisso com a realidade endógena… é problemático. É uma espécie de auto-boicote que fragiliza qualquer nação. Não é ser contra irem estudar fora, mas muitas vezes nem é isso que acontece. Repare-se que dos 10 mil jovens que deviam estar nas instituições de ensino superior em Portugal, apenas 4 mil estão [a frequentar essas instituições]. Significa que os outros se converteram em uma obra barata. Não dão o contributo à altura do que podiam dar, nem em Portugal e nem em Cabo Verde. É triplamente nefasto. É nefasto para Portugal, de certa forma, é nefasto para Cabo Verde e é nefasto para o jovem, que está a procurar melhores condições, mas fazendo tábua rasa de todo o investimento que a família e o Estado fizeram nele, exactamente porque há uma displicência de vários actores. Então, entendo que devemos trabalhar, não para dissuadir a emigração, mas para organizar as coisas por forma a que o jovem não tenha de sair para encontrar os meios básicos para dar prossecução aos seus estudos ou os meios básicos para garantir o seu futuro. Podíamos perfeitamente garantir uma emigração qualificada. O jovem faz a sua formação superior em Cabo Verde e ao emigrar como quadro já terá um outro estatuto. A sua inserção socio-laboral no país de acolhimento é totalmente diferente daquele jovem que saiu sem formação. Mas, a própria Universidade de Santiago tem de estado a trabalhar para chegar a essa diáspora. Lançamos, este ano, um pacote chamado US Diáspora, a partir do qual queremos chegar a esses jovens que estão em Portugal, ou nos Estados Unidos, ou em algum país africano, e que querem continuar os seus estudos. Poderão fazer a sua formação através da US virtual, com propina acessível, com todas as condições de flexibilidade, de acompanhamento e de suporte didático-pedagógico para poder concretizar o seu sonho de formação superior.

Esse programa US Diáspora foi lançado este ano?

Estamos a lançar, este ano. Diferentemente do que se imagina - porque em Cabo Verde entende-se que as instituições de ensino superior do país não têm qualidade - a percepção que se tem lá fora é outra. As instituições de ensino superior nacionais têm 20 anos, a Universidade de Santiago tem 15. A Universidade de Coimbra, por exemplo, é centenária. Não se pode querer que uma instituição que está a começar esteja no mesmo patamar que outra que tem séculos de vida. No entanto, não podemos cair na falácia de achar que o que se faz em Cabo Verde não presta. É procurar conhecer a realidade de cada instituição. Hoje, a Universidade de Santiago já atrai estudantes de diversas partes do mundo, como Portugal, Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Em 2021, cerca de 120 estudantes estrangeiros procuraram a nossa instituição. Uma universidade jovem, que está num país periférico basicamente sem expressão, ser também procurada por várias instituições de ensino superior de várias partes do mundo, para nos candidatarmos a projectos comuns da União Europeia, e outros, é um sinal de que estamos a ter algum reconhecimento e centralidade. Os que lidam connosco, que nos conhecem e que entendem que o conhecimento é universal, reconhecem que as universidades de Cabo Verde podem ser interlocutoras válidas. Mas, nós que estamos cá, entendemos que as universidades não têm como funcionar, que há uma proliferação, etc. Eu não acho que haja proliferação, porque a proliferação tem a ver com algum excedente. Se houver excedente, o próprio mercado vai regulamentar. Se há procura é porque não há proliferação.

Ainda em relação a oferta formativa, como esse programa. Há opções exclusivamente online?

Os cursos online estão associados aos cursos presenciais. Nos termos da lei não há oferta formativa online independente da oferta presencial. Temos um regime de e-learning em que a componente presencial é oferecida através da mediação tecnológica, através dos learning management systems. Então, nós temos esses [sistemas], recobrimos esses vários espaços, mas a partir de uma estrutura central e com o corpo docente adstrito a essa estrutura central.

Apenas não exige presença física.

Isso. É uma formação mediada por tecnologias, mas todas as nossas salas de aula, estão equipadas para que o aluno à distância possa aceder às aulas frequentadas, em regime síncrono. Significa que o que se lecciona é captado imediatamente pelos estudantes que também participam nos grupos de trabalho, participam nas actividades selectivas e ao mesmo tempo tem aulas gravadas para poderem estudar sem ficarem numa situação de exclusão de algum dos suportes didático-pedagógicos colocados à disposição dos demais estudantes. Portanto, os online têm o mesmo acesso aos dispositivos pedagógicos e aos recursos disponibilizados para os que estejam em origem presencial.

E quanto aos vossos antigos estudantes. Sabem onde andam os alumni e o que fazem?

Temos o gabinete de apoio e acompanhamento de egressos. Portanto, conseguimos mapear os alunos que saem da Universidade de Santiago, sabemos onde estão e realizamos estudos para avaliar a taxa de empregabilidade.

E quais são os cursos com maior empregabilidade?

Constatamos que os nossos jovens, os egressos, estão inseridos no mercado de trabalho. Dos estudos que fizemos, constatamos que cerca de 90% dos nossos graduados estão empregados. Nem todos estão empregados na mesma área de formação, mas esta é uma tendência mundial. A formação superior não significa que aquela área específica de conhecimento permitirá uma transição imediata para o mercado dentro dessa área específica. Mas, com formação superior, as chances de inserção sociolaboral são muito maiores. Então, temos uma taxa de empregabilidade muitíssimo alta em todas as áreas de formação. E temos também muitos jovens que saem para a pós-graduação - para mestrado e doutoramento.

Para terminar, voltava à questão da investigação, frequentemente considerada o “parente pobre” do ensino superior em Cabo Verde. Que análise?

Como disse, no caso concreto da Universidade de Santiago, apostamos no princípio da indissociabilidade entre o ensino, a pesquisa e a extensão. Entendemos que a sala de aula não deve ser um locus privilegiado ou exclusivo de formação. A produção, partilha e conversão de conhecimento em bem social são fundamentais. Por isso, temos actividades de extensão em cujo âmbito a comunidade académica se desloca às comunidades para trabalhar em concreto com as pessoas. A ideia é de ter competências sociais e humanas que permitam ter uma visão mais integrada do mundo, ter empatia e evitar que se tornem técnicos isolados da sociedade. Portanto, a ideia de extensão é garantir uma ponte entre a teoria e a prática social. Garantir que os valores que perpassam a sociedade sejam transpostos para a própria comunidade académica. O sistema de djunta mon, a solidariedade intergeracional, a luta para que as pessoas tenham dignidade, a cultura da paz, isso só se consegue com o trabalho integrado em que as academias estejam também envolvidas. Temos vários programas de extensão, 'Rotas do Arquipélago'. Este ano, estivemos com cerca de 350 estudantes e professores na Ilha do Sal, trabalhando em diversas comunidades, com várias actividades. Já percorremos todas as ilhas, e temos o programa 'US Comunidades' que também promove a interacção comunitária, com acções de formação, com ações desportivas, culturais, etc. Quanto à pesquisa, paradoxalmente, ela não é o parente pobre das instituições, porque qualquer instituição, quando produz conhecimento, produz também a chamada pesquisa básica. Ninguém faz mestrado sem ter uma dissertação que é um trabalho de pesquisa, um trabalho de natureza científica. E para se produzir uma dissertação, temos o estudante que está a pesquisar, o orientador e toda a instituição que está envolvida nessa pesquisa. O mesmo para o TCC [trabalho de conclusão de curso]. As instituições, portanto, produzem conhecimento e fazem pesquisa. Só que são as chamadas pesquisas básicas, que estão atreladas à dinâmica de produção de conhecimento da própria instituição. O que não temos em Cabo Verde, e aí sim é um parente pobre, é a chamada pesquisa aplicada. Mas, nenhuma instituição, em nenhuma parte do mundo, consegue fazer pesquisa aplicada sozinha. É por isso que temos uma FCT em Portugal, que concede bolsas, abre concursos e financia projectos de pesquisa. É por isso que temos a CAPES no Brasil, temos as fundações de amparo à pesquisa nos vários estados brasileiros. Envolvem bilhões de dólares, e nessas pesquisas estão envolvidas as grandes empresas, multinacionais, o Estado e as universidades. Portanto, basicamente, é uma parceria tripartida em que os grandes grupos empresariais estão envolvidos, porque sabem que a pesquisa aplicada vai viabilizar o seu negócio, vai permitir a sua inovação. O Estado normalmente não investiga: aloca recursos para que os académicos e os cientistas façam pesquisa. Nenhuma instituição de ensino superior no mundo vai promover pesquisas sozinha. Transferir esse ónus para as universidades, universidades que estão a começar, é uma loucura. É fundamental que haja sinergia e que a pesquisa também reverta a favor da própria sociedade. Eximir-se de responsabilidades é cómodo, é fácil, mas é altamente pernicioso. É por isso que eu falo da necessidade de uma assunção estratégica desse desígnio nacional, que é o ensino superior, a pesquisa, a ciência. Sem essa assunção estratégica, dificilmente chegaremos lá. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1193 de 9 de Outubro de 2024.

Leia também a entrevista a Carlos Delgado, Reitor da Universidade Lusófona de Cabo Verde: aqui.

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Autoria:Sara Almeida,13 out 2024 14:37

Editado porSara Almeida  em  16 out 2024 6:07

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