Cabo Verde, a nível de política externa, tem vindo a ter um papel cada vez mais interventivo no cenário internacional. Porquê?
Cabo Verde sempre teve uma boa actuação no plano externo. Agora, com uma nova dinâmica imprimida da sua actuação diplomática, nós temos registos de que, de facto, a nossa actuação tem sido bastante pragmática e diligente. Devo sublinhar que Cabo Verde tem zelado, sobretudo, pela defesa dos valores internacionalmente reconhecidos, nomeadamente a promoção da paz e segurança internacionais, a cooperação internacional, a solidariedade entre as nações, a defesa dos direitos humanos. Portanto, e nessa lógica, nós também temos estado a tomar posições que têm a ver, sobretudo, com as grandes questões, sobretudo as questões mais complexas da agenda internacional, mas, sobretudo, baseando naquilo que é o direito internacional, obviamente, e na Carta das Nações Unidas. A nossa actuação diplomática tem imprimido um pouco mais a visibilidade do país no plano externo. E nessa actuação, o nosso contributo tem sido valioso em diferentes matérias, nomeadamente, como já disse, paz, segurança internacional, desenvolvimento, financiamento para o desenvolvimento, questões globais, nomeadamente as questões transversais como as mudanças climáticas, as novas tecnologias de informação e comunicação, a governança digital, em Cabo Verde, tem estado a ter um papel preponderante na cena internacional.
Fala dessa questão da manutenção da paz e da luta pela paz. Internamente, o posicionamento de Cabo Verde, por exemplo, no que respeita às votações sobre a questão da Palestina, é bastante criticado. Como é que vê essas críticas?
São críticas naturais. Obviamente, nós estamos num país onde prevalece o Estado de Direito Democrático e existe toda a liberdade de expressão. Então, as opiniões são opiniões. Mas, obviamente, o governo, o que eu devo realizar aqui, o governo, nas suas posições, tem-se estribado, sobretudo na defesa daquilo que é o direito internacional e naquilo que são os preceitos, os princípios da Carta da ONU. E as nossas posições relativamente à questão Hamas-Israel, e há que diferenciar aqui as questões, porque muitas vezes nós ouvimos falar do conflito Israelo-árabe, o conflito Israel-Palestina. Nós estamos agora a falar do conflito Israel-Hamas. E Cabo Verde tem optado por defender, sobretudo, a questão do direito internacional humanitário. Nós, muito recentemente, subscrevemos uma resolução do Conselho de Segurança que apela a uma melhor assistência de ajuda humanitária na Faixa de Gaza. Isso também é de se levar em conta. Essa resolução foi passada no mês de Dezembro. Nós também, muito recentemente, votamos favoravelmente ao projecto de resolução que foi aprovado pela Assembleia Geral das Nações Unidas, que reconhece que o Estado da Palestina tem as condições para ser considerado como Estado de pleno direito da ONU e também apela a que o Conselho de Segurança reconsidere a sua posição, nomeadamente, a esta questão. Devo realçar, também, que as duas abstenções que Cabo Verde votou em resoluções anteriores, têm, justamente, a ver com algum desequilíbrio na formulação de algumas disposições dessas resoluções. Porque se nós queremos, de facto, soluções mais sustentáveis, nesse conflito Hamas-Israel nós temos de ter bases seguras para que esse conflito seja solucionado da melhor forma possível. É um conflito que, infelizmente, se vem arrastando ao longo dos anos, mas é preciso ter uma solução que seja sustentável para que a comunidade internacional, sobretudo, no Médio Oriente, conheça dias de mais prosperidade. Dias de mais paz e mais estabilidade na região. Devo, também, sublinhar que Cabo Verde é apologista, é amante da paz. E nós, também, condenamos todos os actos terroristas. Foi nessa base que Cabo Verde, logo de imediato, no dia 7 de Outubro, condenou os ataques que foram perpetrados pelo Hamas. Porque nós consideramos como sendo um acto de terrorismo, que não deve acontecer.
Mas Cabo Verde sempre teve um posicionamento de não alinhamento. Porque esta...
Nós não nos estamos a alinhar neste conflito. Não há nenhum alinhamento. E devo assegurá-lo. Pelo simples facto que nós defendemos, e temos estado a defender sempre, essa posição da solução de dois Estados. Quem defende a solução de dois Estados não se alinha. Não há um alinhamento. Obviamente, nós temos de fazer a avaliação devida daquilo que são os elementos, as condicionantes dessa crise que impera ainda no Médio Oriente. E, em função disso, tomar as melhores posições que se impõem. E devo dizer, também, que relativamente a essa questão da abstenção, basicamente, todos os países do Conselho de Segurança, num momento ou outro, votaram abstenção aos projectos de resolução. Tanto na Assembleia Geral, como no Conselho de Segurança. Portanto, a questão da abstenção não quer dizer que se é contra a canalização da ajuda humanitária. Isso é uma falácia. Nós temos de desfazer essa narrativa de que Cabo Verde, pelo simples facto de ter votado abstenção, não apoia que os corredores de ajuda humanitária cheguem à população mais vulnerável de Gaza. Esta é uma falácia que teremos de desconstruir. Porque, de facto, Cabo Verde, aqui também devo salientar, tem aberto corredores, corredores aéreos, para que a ajuda humanitária chegue em Gaza. Portanto, nada mais falso.
O Dr. Ângelo Correia, na semana passada, em entrevista ao Expresso das Ilhas, dizia que a geopolítica é um dos grandes trunfos de Cabo Verde. Concorda com essa ideia?
Obviamente, obviamente. E devo dizer que Cabo Verde tem sabido tomar posições consistentes e coerentes. E agora, mais do que nunca, sobretudo no contexto em que nós temos cada vez mais tensão geopolítica, há que saber analisar, acompanhar a evolução das coisas. Nós não podemos estar a ter posições que, provavelmente, não irão ajudar a que se encontre, de facto, soluções mais sustentáveis de paz. E, geopoliticamente, Cabo Verde tem sabido navegar. Nós temos tido importantes parcerias, tanto com parceiros do Norte como com parceiros do Sul que têm projectado essa visibilidade, esse papel que Cabo Verde tem na arena internacional. E daí a nossa actuação, portanto, dentro daquilo que são os preceitos também e as disposições constitucionais. Temos de observar a Constituição da República. Mas, obviamente, temos de observar a Carta da ONU. E não temos fugido da regra.
E a nível regional? Que papel é que Cabo Verde pode ter? Por exemplo, temos estes golpes de Estado dentro da CEDEAO, no Mali, no Burkina Faso. Nesta alteração política no cenário internacional, a nível regional. Que papel é que Cabo Verde pode ter na mediação destes conflitos?
Cabo Verde é conhecido, mundialmente, por ser um país de muita estabilidade democrática. Um país, também, que tem zelado e que tem feito esforço, sobretudo, para reforçar a governação. Nós, muito recentemente, realizamos uma conferência na Ilha do Sal, que é justamente para falar sobre essa questão da importância da democracia, liberdade e boa governação. Que, para nós, são os activos de Cabo Verde. E nós também pensamos que a promoção da democracia e da boa governação, obviamente, irá contribuir para que os países encontrem a prosperidade e o desenvolvimento sustentável. Há que fazer sempre a associação entre paz, segurança e o desenvolvimento. Alguém já dizia, sem paz não há desenvolvimento, sem desenvolvimento não há paz. E é nessa óptica que nós, também, na participação que nós temos tido ao nível regional, fazemos que as instituições democráticas sejam respeitadas, que, normalmente, deve haver sempre uma transição pacífica do poder. E é nessa óptica, também, que nós, veemente, condenamos quando há tentativas de golpe de Estado. E nós, quando a nossa sub-região vem registando vários sinais de alguma instabilidade, logicamente, é preocupante. E Cabo Verde, portanto, nos diálogos que nós temos, sobretudo na CEDEAO, e mais precisamente no Conselho de Mediação e Segurança, fazemos sempre o apelo à paz, sempre o apelo à ordem constitucional dos países, porque é fundamental.
A CEDEAO devia ter tido um outro papel na mediação destes conflitos?
A CEDEAO tem tido um papel bastante preponderante e, obviamente, a CEDEAO sozinha não pode fazer tudo. Tem de haver, também, a colaboração por parte dos actores políticos, por parte dos países, e, também, ter um diálogo permanente com outras organizações regionais, nomeadamente a União Africana, e outras organizações internacionais, como as Nações Unidas. Portanto, aquilo que a CEDEAO tem estado a fazer é, basicamente, encontrar soluções para a paz. Mas isso também requer um diálogo permanente entre as instâncias da CEDEAO e os países concernentes.
Mas com o Mali, Burkina Faso e o Níger anunciarem a saída da CEDEAO, a comunidade ainda pode fazer alguma coisa?
Nós temos estado a apelar, sobretudo, ao diálogo, como disse. O diálogo é importante. Nós somos um país que defende, sobretudo, que a concertação e a coordenação entre os países são a principal via para a resolução dos conflitos. Portanto, nós defendemos, sobretudo, que o diálogo prevaleça e que haja sempre soluções que atendam, também, as outras partes. As partes envolvidas nos conflitos ou momentos de tensão interna nos países. E daí, também, Cabo Verde tem dito, categoricamente, que a intervenção militar nunca é uma solução. Temos de encontrar outros caminhos. E outros caminhos têm de ser a via da diplomacia.
Uma das críticas que tem sido feita pelo PAICV é uma alegada aproximação de Cabo Verde à NATO. Dentro deste cenário político internacional, Cabo Verde tem, obrigatoriamente, que pertencer a uma aliança político-militar.
Nós não estamos a falar de uma pertença à NATO. Até porque NATO, geograficamente... Cabo Verde está no Atlântico Médio. A NATO é a organização, portanto, de países que fazem parte do Atlântico Norte. O que nós estamos a fazer é construir uma parceria mais reforçada. E há que registar que Cabo Verde já fez essa parceria com a NATO. Em 2006 tivemos o exercício militar, o Steadfast Jaguar. E nós queremos, obviamente, continuar a ter essa parceria nesses mesmos modos, mas também saber aproveitar os outros instrumentos de cooperação que a NATO tem com os países terceiros, nomeadamente o Global Partner or Individual Partnership com países terceiros. E é nesta lógica que nós queremos ter essa parceria que visa também reforçar sobretudo a nossa capacidade de defesa, dando também alguma assistência técnica às instituições nacionais. Não passa disso.
Até porque, com a questão do tráfico de droga internacional, do tráfico de pessoas, são necessárias parcerias internacionais, não é?
E é nessa lógica que Cabo Verde vem desenvolvendo as suas parcerias, tanto como parceiros do Sul como parceiros do Norte. Nós estamos numa zona bastante estratégica, mas ao mesmo tempo é uma zona de elevados riscos, nomeadamente quando se tiver em conta a criminalidade transnacional. Nós estamos na placa giratória entre América, Europa e África. Portanto, nessa placa giratória, há que combater a criminalidade transnacional, nomeadamente tráfico de droga, tráfico de pessoas, a pirataria marítima, a pesca ilegal. Portanto, há que promover cada vez mais parcerias que visam o reforço sobretudo da nossa segurança marítima. Sendo um estado que é 99.3% mar, portanto, a nossa estratégia relativamente, relativamente da defesa e da segurança, deve-se confinar-se sobretudo nessa lógica e tendo em conta sobretudo também o espaço onde estamos inseridos.
Tendo em conta que o Golfo da Guiné é um dos principais pontos de pirataria a nível marítimo, Cabo Verde também tem de ter aqui um olho mais vigilante, não é?
Concordo, concordo plenamente e devo realçar que Cabo Verde tem beneficiado também, mesmo no quadro sub-regional, no quadro do projecto SWAIMS, que é Support West Africa Integrated Maritime Strategy, e também no quadro de projectos como a Guinex, como o Brasil, portanto, é um projecto regional que o Brasil tem com alguns países da África Ocidental. E nós temos sabido também implementar exercícios conjuntos de vigilância. Também devo realçar neste ponto que a nível regional nós também temos tido um papel preponderante. Como sabe, Cabo Verde agora alberga o Centro Multinacional de Coordenação Marítima da Zona G, dentro da arquitectura de Yaoundé. Portanto, é uma estrutura que irá, de facto, não só trazer mais capacidade institucional ao país, mas também fomentar sobretudo a nossa integração regional, sobretudo na perspectiva de segurança e defesa.
Cabo Verde e Marrocos têm uma ligação histórica bastante longa. Cabo Verde abriu uma embaixada em Marrocos, um consulado em Dakhla, que causou alguma polémica por causa da questão do Sahara Ocidental. Cabo Verde deixa de reconhecer o direito à autodeterminação do povo do Sahara Ocidental?
Cabo Verde, no seu diálogo com o reino Marrocos, tem zelado, de facto, para que o plano de autonomia e para a solução do conflito no Sahara Ocidental seja uma solução sustentável para o conflito. O plano de autonomia tem 35 pontos, e como pode também constatar, entre esses pontos, há a questão da autodeterminação. E devo dizer que aqui há que também desmistificar um pouco aquilo que é o conceito, há várias teorias sobre a autodeterminação. Há vários conceitos, há várias teorias sobre isso, mas o que nos interessa é que, sobretudo, é que a comunidade internacional, e sobretudo num quadro de concertação sob a égide das Nações Unidas, venha encontrar uma solução para este conflito. Agora, devo dizer que a abertura da nossa representação em Rabat, e em Dakhla, é mais sobretudo na perspectiva também de termos uma maior presença de Cabo Verde no continente africano. Muito recentemente, também, abrimos uma embaixada na Nigéria para reforçar sobretudo a nossa integração regional. E este ano, também, foi aberta a nossa embaixada em Addis Abeba, que tinha sido encerrada há muito tempo, e que vai também contribuir para que Cabo Verde tenha um papel mais activo no cenário do continente africano. Addis Abeba, como disse, é um ponto estratégico das discussões sobre as grandes questões da agenda africana. E o nosso propósito é sobretudo fomentar as relações com os países da União Africana. E Marrocos tem sido um tradicional parceiro de cooperação com Cabo Verde em diferentes domínios. Também alberga um significativo número de estudantes aí. E pensamos que a decisão que foi tomada em nada fere com a nossa Constituição, como se fez passar na comunicação social.
Depois há também a questão do financiamento das embaixadas, que também tem causado alguma polémica.
Sim, o financiamento das embaixadas é algo muito natural no relacionamento entre os Estados. As facilidades para a instalação de embaixadas, concedidas por um Estado, é muito comum, como disse, nas relações entre países. Muito se fez no passado. Cabo Verde obteve, muito no passado sobretudo, nos primórdios da sua independência, facilidades por parte de outros países. E nós pensamos que a facilidade que é concedida para a instalação ou abertura de chancelarias, em nada fere com a Convenção de Viena sobre as relações diplomáticas. Fosse um acto que fosse indigno, como também se quer fazer passar, acho que a própria Convenção de Viena, portanto, estipularia alguma disposição sobre isso. Nada mais natural. E devo realizar também, Cabo Verde tem acordos de reciprocidade sobre os imóveis, portanto, diplomáticos. Nada mais natural. Gostaria também de realçar um outro ponto que é a questão que devemos imprimir na gestão das relações externas e que é imprimir sobretudo um maior sentido do Estado nas relações externas e o tratamento das questões, sobretudo as questões mais sensíveis ou mais complexas da agenda internacional. Nós precisamos formar consensos, consensos nacionais. E consensos nacionais giram à volta desse sentido de Estado, que é também fundamental para que o país tenha unicidade na política externa. E devo dizer que nós teríamos mais ganhos, enquanto nação, enquanto país, se começássemos também a debater questões que têm a ver com a política externa, nomeadamente o financiamento do desenvolvimento, as alterações climáticas, a reforma da arquitectura internacional do financiamento, a diplomacia económica, o desenvolvimento sustentável. Penso que essas são as grandes questões que deveríamos focar um pouco mais. E eu acredito que, tendo um sentido de Estado mais elevado entre diferentes intervenientes, estaríamos a ter muitos mais ganhos. O país sairia a ganhar.
Para terminarmos, eleições em França, campanha nos Estados Unidos. Em França, a extrema-direita ganhou a primeira volta das eleições com uma vantagem relativamente considerável em relação aos restantes partidos. Nos Estados Unidos estamos a assistir a uma possibilidade forte no progresso do ex-presidente Trump ao poder. Como é que vê este cenário político internacional?
Nós estamos a acompanhar, obviamente, toda a discussão, sobretudo no processo eleitoral presidencial nos Estados Unidos. E, relativamente à ascensão da extrema-direita, sobretudo na Europa, também acompanhamos. Obviamente, teremos a preocupação, sobretudo, do ponto de vista daquilo que é a parceria que nós temos com a União Europeia. A preocupação, sobretudo, de manter as boas relações de cooperação e a parceria especial que temos tanto com a União Europeia como os seus Estados Membros. Devo dizer também que a ascensão da extrema-direita pode ter, eventualmente, ainda não temos factos, impactos na comunidade emigrada de Cabo Verde. Como sabe, uma boa parte está radicada nos países da Europa. Mas, obviamente, é algo que teremos de acompanhar. Ainda não temos elementos para fazer uma avaliação precisa e daquilo que deve ser feito para contornar um ou outro efeito que seja menos positivo nas relações entre Cabo Verde e os países que têm o regime ou que têm partidos da extrema-direita. Mas gostaria apenas de destacar que nós somos um país que apela sempre a parcerias e também estaremos sempre disponíveis a continuar a manter as relações, as boas relações de cooperação e de amizade que temos com os vários países europeus.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1179 de 3 de Julho de 2024.