“O grande factor de força, prestígio e relevo de Cabo Verde no mundo é a geopolítica”

PorSara Almeida,29 jun 2024 12:31

Ângelo Correia – Especialista em Segurança
Ângelo Correia – Especialista em Segurança

O antigo ministro português, empresário e especialista em Segurança Ângelo Correia integrou a comissão de trabalho que elaborou o novo Conceito Estratégico de Defesa Nacional de Cabo Verde, já apreciado positivamente pelo Conselho Superior da Defesa Nacional, e que vai esta semana a debate no Parlamento. De passagem por Cabo Verde, a ocasião foi pretexto para uma conversa onde a Segurança foi o tema central e que começou no plano global, e suas cisões e contradições, passou pelo regional, e pela incapacidade da Europa de se afirmar, e terminou em Cabo Verde. País mais mar do que terra, voltado para o mundo, a sua força “depende da capacidade de encontrar oportunidades exteriores para desenvolver as suas potencialidades internas”, advoga o ex-político. Um país que se quer também cada vez mais forte a nível da sua Segurança e diplomacia securitária e que, garante Ângelo Correia, se vê hoje dotado de um conceito estratégico de defesa nacional holístico, moderno e exigente.

Estamos num mundo cada vez mais interconectado, mas, ao mesmo tempo, cada vez mais atomizado. Como é que vê esta dicotomia?

Acho que estamos perante fenómenos que produzem efeitos contraditórios. O mundo viveu desde o final do século [passado], um grande período de preparação e expansão da globalização, que levou à glória da China e da Índia. E que em vez de ser um two-way street, uma estrada com dois sentidos, caminhou-se apenas da Europa e dos EUA para a Ásia. Ou seja, os efeitos benéficos no emprego, no produto, na qualificação, beneficiaram a passagem de classes pobres para classes médias e de classes médias para classes altas, na Índia e na China, duas grandes potências do Índico e do Pacífico. Paralelamente, houve uma inversão na Europa e EUA, porque se desindustrializaram. Trump, aliás, beneficia do efeito da desindustrialização e da radicalização política que emerge do desemprego em Detroit, por exemplo. No norte da França, os trabalhadores do Partido Comunista Francês passam para a Frente Nacional. Portanto, a desindustrialização, que é o resultado da globalização nos EUA e na Europa, promove dois efeitos. Um físico, contextual, que é o desaparecimento de um sector importante, que com isso abre a porta ao comércio externo chinês em larga escala e à concepção de que a China é a fábrica do mundo. E a globalização traz, por isso, uma situação de expectativa. Entretanto, a guerra da Ucrânia trava a globalização. A violência impôs uma restrição à globalização. Os realinhamentos político-ideológicos tendentes a recriarem uma nova ordem internacional, o que significam é a cisão. Um mundo de cisões é um mundo não globalizado.

Estamos a viver um momento …

De contradições, de desejos não cumpridos, de efeitos perversos. Tudo isso está a acontecer e aquilo que se afigura, do meu ponto de vista, nos próximos tempos, é a emergência de alguns fenómenos decorrentes. O mundo pensa que a China e a Índia são potências actuais. Não. Em meados do século XVIII, metade do produto interno mundial, era absorvido pela China e pela Índia. Não fora o desenvolvimento tecnológico do capitalismo industrial dos EUA e da Europa, e tudo seria diferente. A própria dominação dos EUA e da Europa, em geral, travou uma capacidade de expansão e de modernização que a China tinha, com o seu tecido humano, que é um tecido de altíssima qualidade, tal como a Índia. Por tudo isso, percebemos, pelos últimos anos, que está a acabar é a associação da globalização com a questão da ordem internacional. Todos os países que desafiam os EUA como, não já hiperpotência, mas ainda uma grande potência, colocam sempre a questão de que a ordem internacional, pautada e determinada pelos EUA, beneficia-os a eles e aos seus amigos, contrariamente aos outros países. Como tal, há uma reclamação permanente, de que é preciso alterar a ordem internacional e alterá-la não é tanto modificar regras: é cindi-la em duas ordens. É dispormos de Nações Unidas, Banco Mundial, FMI, Organização Mundial de Comércio, dispormos de regras concretas que vigoram, e ao mesmo tempo, se calhar, permitirmos o seu oposto, gerido por outros países. Ou seja, o receio que todos temos é que a ordem internacional se divida, que a polarização, a bipolaridade, que coloca em permanente desafio os EUA e a China, tenha o efeito de limitar o crescimento económico, a relação positiva entre os Estados e os povos e crie dois mundos distintos.

Uma nova guerra fria?

É uma guerra fria, com uma diferença. Da China, podemos esperar a condução de um processo estratégico baseado na geoeconomia. Da Rússia, da Coreia do Norte e do Irão não podemos esperar isso. Ou seja, haverá uma direcção política que tem como base e método uma visão geoeconómica para o mundo, o mundo das rotas das sedas, e haverá outra hipótese, que é a de, para além disso, haver um núcleo de poder militar muito forte - aqueles três países que referi. Logo, estamos perante situações que prevêem dificuldades enormes e com algumas angústias à mistura.

Tentando simplificar uma questão complexa que é a Segurança dos países em geral. O que os países devem ter em conta quando pensam na sua Segurança?

Nos últimos 20 anos existiram um conjunto de problemas que denotam rupturas completas da Segurança em alguns países. Algumas foram levadas a cabo por grupos radicais marginais limitados, mas poderosos: Al-Qaeda. Outros com uma ideia de expansão territorial: Daesh. Outros com uma perturbação profunda no comércio mundial. Basta ver o que se passou na costa da Somália e hoje em dia na entrada do Mar Vermelho. Portanto, há fenómenos que têm demonstrado a incapacidade do direito internacional em regular, quando alguns países decidem que não lhes importa o cumprimento de leis internacionais. O exercício da força está a suplantar o direito internacional. Quando assim é, estamos numa situação complexa. Isto é, não há solução.

Então o que podemos fazer para mitigar?

Dissuasores. Quer dizer que o mundo encontra, dos vários lados em que os países se podem posicionar, um dissuasor, uma organização que mostre a quem faz uso da força que pode responder da mesma maneira. Não é que respondam: podem responder. O problema que se põe a muitos parceiros é recusarem-se a fazê-lo. Isto é, acham melhor deixar passar e condenam-se à impotência. É o caso da Europa.

A guerra da Ucrânia veio levantar a eventual necessidade de a Europa ter uma força militar.

A guerra Ucrânia mostrou uma incapacidade política da Europa de se afirmar no mundo. A Europa anda numa tentativa de afirmação mais ou menos desde 1995, altura em que se começou a falar da chamada identidade europeia de defesa e segurança. O presidente Jacques Chirac era um homem que cultivava esta ideia e, através dela, procurava-se uma identidade, não só francesa, mas europeia, que dentro da NATO possibilitasse o uso, a utilização e a efectividade de um pilar europeu. Não se fez. A Europa, face aos EUA, assumiu sempre uma posição de retracção e diminuição de poder. Por isso, no debate interno da NATO, a União Europeia contentou-se com as missões de Petersberg, as chamadas missões de paz, ao passo que as missões onde o hardware é mais importante, as missões militares, reservaram-se para a parte americana dentro da NATO. Ou seja, a Europa, progressivamente, abandonou a ideia de ser um poder. Quis criar uma imagem, ter um excelente software e tem. Tem bons teatros, tranquilidade, bom sistema social, bom sistema de lazer …Tudo isso é óptimo. O problema que se põe para a Europa é como é que ela garante isso a si própria.

A Europa estava traumatizada com as Grandes Guerras.

A Europa passou 70 anos sem guerra. A única guerra lateral dentro da Europa foi nos Balcãs, no final do século XX, princípio do século XXI. Portanto, não se pode queixar. A Europa cansou- se é de sacrifício. Acha que tem direito ao futuro, ao prazer, à liberdade, sem grandes sacrifícios. Os outros países, para terem essas garantias, lutam e fazem sacrifício. Esta é a diferença essencial. A excelência, a vitalidade e a força só se ganham com sacrifício e trabalho. A Europa esqueceu isto e, como tal, nem sequer se consegue reduzir-se a um dissuasor mínimo. Deixa passar e não cumpre aquilo que promete, pois podia, no início da guerra, ter explicado à Ucrânia que não tinha meios de fornecer munições e armas, muito menos - e não fazia sentido - empenhar-se directamente. A Ucrânia acreditou no que Europa dizia e isso deixou-nos num pântano, que é o sacrifício da Ucrânia por uma razão que a Europa não cumpriu. É um princípio de má moral, de um comportamento, acima de tudo, infantil ou inadequado. Não se pode acompanhar uma situação garantindo apoio e depois não o dar. Tudo isto coloca a Europa numa situação de grande debilidade interna. Tenho a convicção de que os europeus começam a perceber que estamos num castelo de areia, e se a confiança europeia não vê a autogarantia assumida pelos próprios europeus, vamos passar maus tempos.

Falando ainda de blocos regionais. Como vê o que se passa na CEDEAO e seus sistemas de segurança?

O problema da CEDEAO é mais grave. Queiramos ou não, havia em África uma grande potência da ordem instalada que era a França, que desde 2016 começou a afastar-se, progressivamente, o que culminou, por exemplo, no que aconteceu com as minas de Urânio do Níger [que revogou a licença de exploração da empresa estatal francesa]. Tudo isto indica a fraqueza, neste caso, de uma parte substantiva da Europa. Por outro lado, no que respeita às alterações de poder por via autocrática no Burkina Faso e no Mali, a CEDEAO exerceu uma tentativa de correcção, explicando que era preciso preservar o poder democrático existente e não usar do poder militar para o alterar. No primeiro momento, parecia que ia dar resultado. No segundo, os próprios parlamentos de alguns países da CEDEAO alteram a decisão dos governantes. Ou seja, criou-se uma situação com indefinições o que significou a falência política da CEDEAO para actuar. Logo, acho que não é um instrumento a que, porventura, Cabo Verde possa um dia recorrer, se tiver essa necessidade. Esperemos que não tenha.

A CEDEAO tem a ESF e já teve a ECOMOG nas guerras civis… Teve algum sucesso.

Teve, mas este [caso] era o mais grave. Porque se derrubam governos legitimamente instituídos e aparecem líderes militares com um descarado golpe militar anti-democrático, que nem sequer prometem quando é que vão a novas eleições, se perpetuam no poder e decidem na ordem externa sem consistência.

Assistimos ao aumento de golpes de estado, autocracias, e, também, do populismo. Ou seja, temos visto um movimento anti-ordem constitucional e anti-político. Num momento em que não há grandes causas ou ideologias, como voltar a dar valor à política “tradicional”?

Essa é a pergunta que legitima uma resposta à altura, mas que é difícil de dar. Eu próprio mergulho nessa realidade que coloca, porque lembro-me que, nos anos de 60/70, antes do 25 de Abril, tínhamos causas e lutámos por elas. Nos primeiros tempos a seguir ao 25 de Abril continuámos a lutar por causas, que eram, fundamentalmente, um sentimento de liberdade, de desenvolvimento, de afirmação no mundo. Portugal ganhou nos primeiros tempos. Hoje em dia, a maior parte dos países está afectada por essas várias realidades descritas, por várias razões, uma das quais o esgotamento do centro. Aquilo que foi a afirmação de valores normalizados, estandardizados, esvaiu-se no tempo. Há um vazio no centro e um desvio para os extremos das causas e das novas expectativas, o que é mau, porque cada extremo tende a criar expectativas não cumpridas ou exageradas em relação ao outro, que geram, por seu turno, expectativas e novas correntes que estão para além da realidade. Muitos movimentos populistas respondem àquilo que são os desajustamentos que uma sociedade tem em relação a si própria e que não consegue responder ao dia-a-dia. Por outro lado, há populismos que emergem da direita ou da esquerda, com a criação de novos modelos e novas concepções ideológicas que não têm adesão à realidade. Andamos numa luta entre realidade e não-realidade, entre a alteração de situações, de um modo ou de outro, não caucionadas. Coloca-se a questão: apesar de termos comunicação social em quantidade e qualidade, os cidadãos absorvem tudo isso? Mais, se absorvem, absorvem bem ou mal? Como é que funciona? Funcionam os critérios do crivo da normalidade ou o crivo do exagero? O que é que émoderno? É o que é hostil? Ou é o que é tradicional? Estamos num misto de conflitos dialécticos, que não nos permitem aferir para onde vamos. Repare-se nos resultados das eleições europeias que, em todos os países europeus, foram significativos. Como é que é concebível que as pessoas na Alemanha votem no AfD? Não há critérios para definir, hoje em dia, verdades. Vivemos na simulação, no sonho, na alienação, vivemos na frustração e emerge qualquer coisa que não é suficientemente sólido. Ora, quando não temos nada de sólido para nos agarrarmos, com métrica de valores, com métrica de comportamentos, perguntamos para onde vamos nós. Quem ainda consegue fazer a pergunta está lúcido. Quem nem faz a pergunta, limita-se a sobreviver, é alguém que perpassa por cá sem perceber qual é o seu destino.

Voltando à questão da Segurança, mesmo em democracias estáveis, uma problemática que se coloca é como evitar a tentação de sacrificar a democracia em prol da segurança. É essa a questão: como evitar?

O pior erro que se pode fazer na história é permitir que alguma coisa se sobreponha à liberdade e à democracia. Se constatarmos que na vida corrente há comportamentos cuja solução é previsível poder advir do uso excessivo da segurança, acabamos com o sistema político democrático. Acontece em muitos casos. Por exemplo, o uso de força policial em alguns sítios da América não tem nada a ver com a segurança, mas sim com preconceitos ditos em nome da segurança. Penso que tudo depende da sanidade moral dos sistemas e a maior parte dos países não têm equilíbrios. Deixámos polarizar em excesso certas questões dentro de alguns países. Em última instância vai tudo ter à questão da liberdade. Aquilo que nos distingue, pode distinguir e deve distinguir a longo prazo é a celebração da liberdade. Mas, a liberdade pode permitir que aqueles que não a querem possam viver nela até o limite em que a possam destruir. Aí põe-se uma questão da segurança, não física, mas psicológica, do próprio sistema. Quando uma parte da sociedade reclamante sobre alguns problemas que têm a ver com a liberdade não se limita a dizer que quer mudar o regime, mas começa a exercer acções que podem mudar o regime, sem o consentimento da própria população, estamos numa altura em que é justificado algum uso da força. Mas são situações raras. Em liberdade, não se pode dizer que quem não pensa como nós e acha que as coisas devem ser alteradas tem a obrigação de estar calado. Isso está errado e apenas fomenta maiores [ressentimentos]. É a atractividade do prisioneiro, da vítima, do mártir. Por isso, devemos dar-lhes um lugar na democracia até para promover mudanças. A democracia deve ser sempre um centro de reinserção, porque a vida é tão complicada que às vezes há pessoas que fogem a ideias, a princípios, a modos de estar. Tudo o que seja reinserir, renormalizar, é vital desde que corresponda, de facto, a uma sensação de realismo e não de ocultação. Porque às vezes fala-se de reinserção para não agir.

A guerra Ucrânia mostrou uma incapacidade política da Europa de se afirmar no mundo (…) A Europa, progressivamente, abandonou a ideia de ser um poder

Falando, então, de Cabo Verde em concreto. Vi que defendeu que Cabo Verde possa ser uma extensão do Espaço Schengen em África.

Eu disse outra coisa, mas parecida. Parte de uma ideia básica de que Cabo Verde é um país africano, mas não só: é um país atlântico. É um país atlântico ao pé da África, o que altera muita coisa. Cabo Verde é dos raros países que tem a capacidade, na sua parceria que com a União Europeia, de proceder, de certa forma, a um controlo favorável à Europa no seu próprio espaço. Ou seja, admito essa hipótese, porque as circunstâncias organizativas e democráticas de Cabo Verde são, no meu ponto de vista, tão sólidas que é possível este ser uma das fronteiras da Europa. É dos raros países onde isto pode ser feito e, portanto, pode ser um local onde os serviços de fronteiras da polícia cabo-verdiana funcionem como um crivo, um separador entre aqueles que a partir de Cabo Verde podem entrar na Europa.

Mais uma terceirização de fronteiras da Europa. Isso não é desresponsabilizar a Europa dos “problemas” que devia ser ela a gerir?

Mas a Europa não consegue resolver uma série de problemas básicos. Estamos a falar de um país que já tem um acordo de parceria, não é um país estranho, aberrante ao sistema. É um país, além disso, que tem parte da sua diáspora em vários países da Europa e é uma diáspora integrada. Ou seja, um exemplo que Cabo Verde está a dar a muitos países africanos, para não falar de outros mais longe, é de que as suas comunidades diaspóricas estão numa fase de integração na Europa, o que garante, à partida, um sinal de equivalência. Assim, penso que é possível, no caso de a Europa querer aliviar um conjunto de situações que tem para resolver da defesa, da política externa, da circulação Schengen, das suas fronteiras, transferir algumas responsabilidades para alguns, muito poucos, países. Cabo Verde é o único exemplo em África.

E o que Cabo Verde ganharia com isso?

Respeitabilidade. Aquilo que é mais importante em Cabo Verde, para si próprio e para o mundo, é a fiabilidade que está a demonstrar. Cabo Verde tornou-se num país fiável e respeitável, como consequência de vários factores e isso vê-se nos relatórios do desenvolvimento humano e da sustentabilidade, nos quais está nos patamares mais altos. Cabo Verde não é um país rico, todavia o comportamento ético, de respeitabilidade democratizada, até interna, mostra que está para além daquilo que é a sua não riqueza material. A identidade cabo-verdiana é muito forte, num sentido específico, pela sua adaptabilidade à multiculturalidade a que não é alheio o facto de uma parte da cultura cabo-verdiana estar inserida dentro do espaço da cristandade. Logo, a ideia é possível e pode ser feita. Desde que o sistema Schengen o contemple, a posição geopolítica e geocultural de Cabo Verde permite-o.

A posição Atlântica de Cabo Verde ainda é geoestrategicamente importante? Já foi no passado, mas e agora?

O grande factor de força, de prestígio e de relevo de Cabo Verde no mundo é a geopolítica. A capacidade geopolítica de Cabo Verde conseguiu construir e dimensionar a sua identidade de um modo sadio, quer no próprio país, quer nas suas diásporas. Se fizermos um bosquejo em volta de um conceito estratégico, isto é, o que Cabo Verde deve fazer para a longo prazo ultrapassar as dificuldades presentes da economia, a resposta é simples, e é sempre consonante com o princípio básico de que Cabo Verde depende da capacidade de encontrar oportunidades exteriores para desenvolver as suas potencialidades internas. Ou seja, a melhor forma de desenvolver as potencialidades de Cabo Verde é acompanhar ou capturar oportunidades externas, que são as que conduzem à força económica. São três [áreas]. Primeira: a ideia de que os transportes são vitais para Cabo Verde. É uma exterioridade, mas é aquilo que lhe dá força, como estaleiros de reparação, hub de contentores, hub aéreo. Em suma, as ideias exploratórias a longo prazo que dão valor económico a este arquipélago centram-se na ideia de transportes, ou seja, ideias de e para [elementos] exteriores a Cabo Verde. Segunda: aquela que decorre da área financeira. A área financeira é, hoje, uma área muito selectiva, que opera com os chamados asset management, a capacidade de gerir fundos. Essa capacidade requer áreas onde o sistema de transportes é bom, o sistema de telecomunicações é do melhor, a segurança é enorme, o sistema de saúde é aceitável e o sistema de protecção bancária é manifesto. Quando tiver estas 5 questões resolvidas você faz aquilo que Singapura, ou as Maurícias começaram a fazer há 40 ou 50 anos, o Dubai há 20, o Bahrein ... Entre o Médio Oriente, o Golfo [Pérsico], e América do Sul não há um centro regional financeiro, não há nada, e o único país onde penso ser possível fazer isso é Cabo Verde. Terceira área: o Turismo, que está articulado com os dois anteriores. Posso chegar a Cabo Verde de avião e apanhar logo outro para África ou ir para a América, ou posso ficar um dia no Sal ou na Praia.

O serviço militar não serve apenas para fornecer meios militares para a guerra, ou para a protecção da paz, mas para defender o interesse do Estado e das suas populações, para garantir o bem-estar e a identidade das pessoas, trabalhando para uma causa comum, para um sentido colectivo nacional.

Já tivemos esse projecto de hub e inclusive um stopover no Sal, mas depois veio a pandemia...

Os três processos são injuntivos, têm que ser levados a par e passo, e penso que é por aí que Cabo Verde arranca. No turismo, por exemplo, o essencial não é Cabo Verde receber milhares de turistas, é fornecer os alimentos, água e outros bens e serviços aos turistas que estão nos hotéis. A transformação do sistema produtivo de Cabo Verde para responder ao seu sistema hoteleiro é uma mudança de qualidade e de valor acrescentado. E nas outras áreas que referi, quando se fala de engenharia, manutenção sistemas financeiros, sistemas de gestão portuária, estamos a falar de profissões com alto valor acrescentado, isto é, mais bem pagas. Por isso, centro-me nestas três áreas aquilo que eu entendo que são as respostas que a economia e a sociedade devem dar ao desenvolvimento futuro de Cabo Verde.

Muito do que refere está no próprio Conceito Estratégico de Defesa Nacional, que veio apresentar esta semana, no Fórum Defesa de Nacional. Numa primeira leitura, o que sobressai desse documento é que é muito holístico…

A palavra é essa, holístico, porque o que está subjacente ao Conceito é a segurança e a defesa. Ora, na Constituição cabo-verdiana que a lei plasma da mesma maneira, tal como na francesa, na espanhola, na portuguesa, até na americana, o conceito de defesa é holístico. Não é apenas a defesa militar da República, é a defesa do modo de vida, é a defesa das instituições democráticas, é a defesa do bem estar das pessoas, é a defesa também da integralidade do território... Logo, ou pensamos a defesa como uma avant-garde que ultrapassa a mera conjuntura militar e securitária ou então estamos a deturpar. Eu prefiro exagerar do que deturpar, por isso, prefiro a visão holística, de abarcar tudo, porque em última instância se se consegue resolver todos esses problemas, estamos, através dessas políticas a contribuir para uma questão essencial que é a segurança nacional de Cabo Verde. A segurança nacional de um país é um resultado final, é boa ou má consoante as políticas para lá chegar foram boas ou más. Apontam-se medidas para, em última instância, a segurança e a tranquilidade dos cidadãos e das instituições seja garantida e a liberdade seja respeitada. Esta é a explicação.

Cabo Verde tem dado passos - como a instalação do centro multinacional de coordenação marítima da Zona G – para se afirmar como parceiro securitário. O Conceito também parece prever uma grande aposta no trabalho com parceiros, e, enfim, na “Diplomacia Securitária”.

Cabo Verde é um país pequeno, com escassos meios. Todavia surgiram factores novos, no amplexo que o rodeia. Próximo de Cabo Verde há a circulação, de produtos proibidos, drogas, e outras coisas, o que obriga Cabo Verde a posicionar-se: ou se alheia da questão ou decide atacá-la. É inevitável perceber também a ocorrência da pirataria. A réplica do que se passou nas costas da Somália também se projecta [aqui]. Para evitar tudo isso, precisamos de duas coisas: um exercício diplomático, que une os países de forma cooperante, e um exercício securitário, em paralelo.

Mas pode-se falar em “Diplomacia Securitária”?

Pode e deve-se. No fundo, o que a diplomacia está a fazer é encontrar uma resposta global, através do convencimento mútuo de que ter um instrumento dissuasório é essencial para evitar problemas. Isto é mais importante do que nos alhearmos da questão e os problemas multiplicarem-se. A resposta não é a punição, é a interdição pelo facto de estarmos cá. A grande diplomacia securitária é aquela que sustenta que, estando preparados para responder, aqui; há uma dissuasão para que não venham ou passem por aqui, para evitar o conflito.

Falando em pirataria, tivemos recentemente um ataque pirata perto das águas de Cabo Verde. O panorama está a mudar?

Está a mudar todos os dias e vai piorar. Por isso é que é urgente redimensionar e requalificar as duas forças militares de Cabo Verde: a Guarda Costeira e a Guarda Nacional. A guarda costeira, numa coisa essencial que é ter meios oceânicos, que não tem. Tem pequenas patrulhas. Tem que ter mais meios de navios patrulhas e barcos oceânicos para atingirem, por exemplo, questões dessa natureza, com armas. Além disso, tem de ser fortalecida com helicópteros e um avião de reconhecimento.

Cabo Verde nunca teve um helicóptero, pelo menos, operacional de forma contínua e consistente.

O actual governo, em particular a acção da Ministra da Defesa, está a ser preponderante. Estou convencido que a curto prazo Cabo Verde pode ter helicópteros e um navio-avião de reconhecimento, isto é, um avião que sobrevoe o chamado domínio público e o domínio do espaço de Cabo Verde, reconhecido pelas Nações Unidas, como a plataforma de Cabo Verde, que é maior que o território terrestre do país. Em relação à Guarda Nacional, é fundamental dedicar-se com meios que têm de ser outorgados para a defesa das chamadas infra-estruturas críticas, como uma unidade de produção de electricidade, uma unidade hospitalar, um porto, um aeroporto…

O nosso risco de sofrer ataques é muito baixo…

Por agora. A grande questão é não existir uma primeira vez. Toda a segurança tem de ser concebida em modos preventivos. É por isso que acho que temos um espaço aberto e onde, por exemplo, consigamos perceber que as Forças Armadas de Cabo Verde têm um papel importante na protecção civil.

E qual a sua opinião quanto ao serviço militar obrigatório. Faz sentido em Cabo Verde?

O serviço militar obrigatório tem duas vantagens. Primeira: quando se vai à tropa, como se diz, o rico e o pobre deitam-se em camas próximas um do outro; os de uma ilha e de outra ilha ficam na mesma unidade. Isto é, o serviço militar é produtor de um sentimento de unidade e de coesão entre classes sociais e entre áreas regionais diferentes, dando um sentido único, universal e global a diferentes pertenças locais. Segunda: ele deve ser utilizado nos países onde, por exemplo, a emigração é grande e onde muitas vezes não só há falta de militares, como de outras profissões que tenham uma necessidade prática. É tão importante o Serviço Militar [no sentido estritamente militar] como o Serviço Cívico que está nas áreas sociais.

O conceito de defesa é holístico. Não é apenas defesa militar da república, é a defesa do modo de vida, é a defesa das instituições democráticas, é a defesa do bem-estar das pessoas.

Mas o Serviço Cívico não poderia ser alternativa?

Não pode, deve ser paralelo. O Serviço Militar é a capa, o amplexo onde, no interior, pode haver várias modalidades, desde a área militar, a área policial, a área de protecção civil, a área de emergência médica, a área de acção social, a área ambiental. Tudo isso. O Serviço Militar obrigatório deve ser concebido como um repositório onde todas as áreas da emergência do Estado têm que ser resolvidas por processos que não são pagos pelo mercado, mas pelo próprio Estado. Vejamos as questões ambientais – e isto prende-se com outro conceito, que é o do uso dual. Há equipamentos que devemos ter, que não servem para vários fins. Quando tenho uma patrulha oceânica nas costas das ilhas, posso ver a erosão, os efeitos das mudanças climáticas, a poluição do mar, as violações da pesca. Ou seja, uma única unidade pode servir para uma amplitude de efeitos, mas temos de ter é pessoal preparado. O serviço militar não serve apenas para fornecer meios militares para a guerra, ou para a protecção da paz, mas para defender o interesse do Estado e das suas populações, para garantir o bem-estar e a identidade das pessoas, trabalhando para uma causa comum, para um sentido colectivo nacional.

O Conceito vai ao parlamento esta semana. Fez parte da comissão de trabalho que o elaborou. Está confiante de que será bem acolhido?

É um Conceito, como referiu e isso é importante, holístico. Não se circunscreve à questão militar. Fala de outras coisas e atribui [a sua concretização] ao Estado e à sociedade. Ora, isto é a modernidade, é esquecer o antigo padrão do uniforme e da bota e da arma, da canhota. Todo o nosso texto altera, destrói, essas ideias.

A parte militar é apenas um dos vários elementos.

É, e envolveu-se noutras coisas, por exemplo, na protecção civil ou , na busca e salvamento. Mas, para isto é preciso ter helicópteros. Tudo isto quer dizer que o que eu acho que foi aprovado pelo Conselho Superior de defesa Nacional e pelo Governo é um Conceito moderno. Muito moderno. Muito moderno, muito actual, mas difícil de ser operacionalizado.

É intersectorial?

Não, é global. Mas tem que ter sectorialidades , porque quando você visa um grande objectivo nacional, depois, para o gerir, tem de o decompor.

“´É urgente redimensionar e requalificar as duas forças militares de Cabo Verde: a guarda costeira e a guarda nacional”-

Vai haver uma comissão de acompanhamento, certo?

Está previsto um grupo de três ou quatro pessoas, junto ao Primeiro-Ministro. O país e a administração pública tem de sentir que estamos numa fase nova em que tem de haver profissionalismo nas questões que exigem responsabilidade. Há pessoas que acompanham o movimento histórico. Há outras que não. Quem prefere o antigamente não vale a pena. Já não está presente. Quem quer o futuro, tem de perceber que tem de haver exigência. Há pouco eu dizia: há países que não têm futuro, que não têm espírito de sacrifício. Sacrifício e profissionalismo. Sem isso não há futuro.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1178 de 26 de Junho de 2024.

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Autoria:Sara Almeida,29 jun 2024 12:31

Editado porSheilla Ribeiro  em  9 dez 2024 23:26

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