Ambos partiram da cidade portuária de Nouadhibou, Mauritânia, mas com histórias bastante diferentes.
O último trouxe 11 homens que zarparam durante quatro dias até ao arquipélago errado, enquanto do primeiro restam apenas quatro sobreviventes que assistiram à morte dos outros 60 ocupantes, dia após dia, durante um mês à deriva.
O GPS que levavam a bordo marcava apenas 200 quilómetros (de um total de 800) até ao destino, as ilhas Canárias, a 11 de Fevereiro, após quatro dias de viagem.
Tinham ficado sem comida nesse dia, mas estavam a aguentar porque o fim da viagem estava à vista, quando ficaram sem combustível.
Ao sabor do vento e marés, entraram numa deriva em marcha-atrás que trouxe fome, sede e desespero, conta Elhadji Sow, da equipa de acolhimento dos sobreviventes, que ouviu “relatos horríveis”.
Os sobreviventes tiveram de atirar ao mar os corpos de quem morria, incluindo cinco mulheres, para evitar a decomposição a bordo.
Outras vezes era o contrário: “Chegavam a amarrar pessoas para impedir que se lançassem ao mar. Eram as que já não tinham esperança e atiravam-se”, para se livrarem da impiedade do sol e das tempestades, ao relento e a beber água salgada, descreve Djibril Ndiaye, outro membro da equipa de acolhimento.
“Um destes sobreviventes traz um cordão ao peito, uma recordação de um amigo que morreu”, mas, no entender de Djibril, são tudo sinais de “um trauma incrível".
"Vão precisar de ser muito acompanhados”, acrescentou.
Contam que pagaram cerca de 700 euros para embarcar e lembram-se que um jovem viajava à borla para o sonho europeu, porque tinha conseguido “uma boleia, oferecida por um dos migrantes”.
Na altura, acharam que era um sortudo.
As autoridades cabo-verdianas acolheram todos os 15 homens sobreviventes das duas pirogas nos quartos do centro de estágio de futebol do Mindelo, sob cuidados médicos e alimentares, confinados e impedidos de conversar com jornalistas, pelo menos para já, alegando a polícia haver averiguações e diligências ainda em curso.
Elhadji Sow e Djibril Ndiaye, senegaleses, fazem parte da Plataforma das Comunidades Africanas em Cabo Verde, acostumada a ajudar imigrantes em apuros e à qual a proteção civil pediu apoio, conta Vitória Veríssimo, comandante regional.
“São de nacionalidades diferentes, com costumes diferentes [dos cabo-verdianos], alguns são muçulmanos que seguem à risca a religião” e a associação faz a ponte, quebra a barreira linguística, inclusive ao telefone, com familiares aflitos.
Todos os quatro náufragos de domingo já falaram com familiares, no Mali e em França (alguns querem ir buscá-los, mas são aconselhados a esperar por indicações), enquanto o último grupo de 11 aguarda por autorização da polícia.
Muitas outras pessoas que tinham familiares na piroga ligam a Sow, que lamenta não ter boas notícias para dar.
Em 2023, um total de 39.910 migrantes chegaram irregularmente às Ilhas Canárias após travessias em barcos precários a partir da costa da África Ocidental, um aumento de 155% face a 2022 (15.682 migrantes), segundo a Organização Internacional das Migrações (OIM).
Também no último ano, houve 47 naufrágios e 958 mortes ou desaparecimentos no registo oficial da designada rota atlântica da África Ocidental, mas os números reais são maiores.
A OIM reconhece que, nos países de origem, há muitas partidas clandestinas, resultando em barcos perdidos no Atlântico, cheios de vítimas invisíveis nas estatísticas.
Sow e Djibril ouvem as motivações desta fuga arriscada para a Europa e já nada os espanta: pobreza, desemprego, instabilidade política e violência, como no Mali, país de origem de 13 dos 15 homens que chegaram a Cabo Verde – outros dois da Mauritânia e um do Senegal.
Os 11 ocupantes da embarcação de quarta-feira são todos de Mopti, entreposto fluvial no centro do Mali, juntaram-se para comprar a piroga a motor com que se fizeram ao mar e quando chegaram à Baía das Gatas, em São Vicente, passearam pela praia e perguntaram se estavam em Espanha.
Às autoridades, disseram que havia mais embarcações atrás deles, mas desde quarta-feira não houve mais chegadas a Cabo Verde.
No arquipélago lusófono, espera-os a todos o repatriamento para os países de origem: será que tentarão apanhar outro barco para a Europa?
“Alguns não, mas não se pode dizer isso de todos”, conta Djibril. “Em terra onde falta esperança, surge sempre a possibilidade de emigrar”, apesar dos traumas e dos avisos, acrescenta.
Barcos de migrantes desafiam a proteção civil de Cabo Verde
A piroga é imagem de marca da pesca nas costas africanas, mas ganhou outro mediatismo nas últimas duas décadas, sobrelotada, como imagem comum das migrações irregulares para a Europa.
Com cerca de dez metros de comprimento por dois de largura, a estrutura de madeira e fibra esbranquiçada descasca-se nas bordas, tem um remendo na proa e parece acumular anos de desgaste, tal como as traves e caixas de madeira num interior despido de segurança.
Um par de calções, uma garrafa de água com rótulo em árabe, cordas e redes ficaram caídos dentro do barco que percorreu mil quilómetros desde a cidade portuária de Nouadhibou, Mauritânia.
“O motor foi retirado e está à guarda das autoridades marítimas”, explicou Anilton Andrade, vereador com o pelouro da proteção civil, que acompanhou as operações à chegada do grupo de 11 ocupantes, oriundos de Mopti, Mali, que passaram quatro dias no mar e, quando chegaram, perguntaram se estavam em Espanha – no arquipélago das Canárias.
Três dias antes, outra embarcação semelhante, que partiu do mesmo porto, encalhou na ilha de São Vicente, na zona de Calhau, após um mês à deriva, sobrevivendo apenas quatro dos 65 ocupantes.
“O primeiro impacto [ao ver a embarcação] é terrível, ver as pessoas nestas condições”, descreve Anilton Andrade, recordando que “na outra embarcação até havia cadáveres, há vários dias”.
As autoridades cabo-verdianas estimam que os barcos precários sejam presas fáceis para o mar agitado e o vento forte, arrastando-as para fora de rota - as próprias autoridades tiveram dificuldades em fazer-se ao mar para ações de busca, no domingo e o vento com rajadas de noroeste não tem parado de soprar.
Vitória Veríssimo está rotinada nas atividades da proteção civil e há um ano assumiu o cargo de comandante regional, mas é a primeira vez que lida com resgate e acolhimento de migrantes em São Vicente.
“Já tínhamos experiência da proteção civil noutras ilhas” e isso está a ajudar, explica à Lusa, ao entrar no centro de estágios de futebol do Mindelo, o espaço que serviu para isolamentos durante a pandemia de covid-19 é o mesmo para onde agora foram transferidos os 15 homens que até quarta-feira chegaram a Cabo Verde.
A todos foi recolhido sangue para análise, despistada malária – Cabo Verde foi classificada livre da doença em janeiro – e covid-19, todos com resultados negativos, e feito questionário sobre doenças crónicas.
Equipas médicas e de enfermagem seguem-nos diariamente e foi estabelecido um plano nutricional para reestabelecer as forças, em especial dos quatro sobreviventes da primeira embarcação, que após um mês à deriva, mal conseguiam movimentar-se – seguiram da praia para o hospital em macas e permaneceram internados dois dias.
“No geral, alguns queixam-se de dores de dentes, dores de cabeça, mas todos estão a recuperar. São pessoas muito calmas, tranquilas e colaboram sempre connosco”, mesmo quando surgem barreiras linguísticas, descreve Vitória Veríssimo.
“Estão nos quartos sob custódia da Polícia Nacional enquanto as autoridades fazem as diligências necessárias” que envolve contactos com os países de origem.
“A nível da proteção civil asseguramos a saúde, higiene e falamos com eles”, acrescenta, acompanhando qualquer necessidade.
Das janelas no segundo andar, observam os treinos de futebol que as equipas locais fazem no relvado sintético do centro de estágios.
No rés-do-chão, um empresário maliano residente no Mindelo passa pelo centro, ao saber da presença de compatriotas e oferece-se para lhes entregar uma das próximas refeições, um exemplo do que têm sido os gestos de entidades locais e particulares.
“Todas as entidades e agentes da proteção civil de São Vicente estão empenhadas em dar o melhor apoio possível”, concluiu Anilton Andrade.
Além dos dois barcos artesanais que esta semana encalharam na ilha de São Vicente, registaram-se outros três casos em Cabo Verde nos últimos 16 meses.
Em Novembro de 2022, uma embarcação com 66 imigrantes senegaleses deu à costa, na ilha do Sal.
Em Janeiro de 2023, uma piroga chegou à ilha da Boa Vista com 90 migrantes africanos a bordo, dois deles mortos.
Um barco que partiu do Senegal em Julho de 2023, com 101 pessoas, foi encontrado à deriva junto à ilha do Sal, Cabo Verde, em Agosto, com 38 sobreviventes, assistidos e repatriados.