Nos últimos dois anos, o gabinete de psicologia da Polícia Nacional, na cidade da Praia, registou um total de 1.327 consultas. Um destaque desse período foi o sucesso no tratamento de questões relacionadas ao álcool.
Só em m 2022, foram realizados 532 atendimentos no gabinete de psicologia do Serviço Social da Polícia Nacional (SES), enquanto em 2023 esse número aumentou para 788.
Com o apoio dos técnicos e a colaboração do Sistema Nacional de Saúde, a instituição conseguiu recuperar 21 agentes que tinham problema de alcoolismo, segundo o director do SES, Bremen Cardoso.
O responsável explica que o serviço é composto por três divisões e visa contribuir para a valorização e cuidado da classe profissional, abrangendo tanto o pessoal policial no activo, como os reformados, mas também os seus familiares.
A área de actuação abrange a protecção social, cultura, desporto e saúde. No que se refere a esse último, Bremen Cardoso explica que a Polícia Nacional tem uma estrutura clínica mínima, mas eficiente, com capacidade para fornecer atendimento básico e realizar procedimentos como eletrocardiograma e exames laboratoriais.
A equipa multidisciplinar, composta por enfermeiros e médicos, actua tanto na prevenção quanto no tratamento de questões de saúde física e mental.
No que concerne à saúde mental, a Direcção do Serviço Social implementa medidas preventivas, como palestras e feiras de saúde, além de oferecer atendimento psicológico individual e em grupo.
Em 2023, afirma Cardoso, a PN não registou casos de suicídio. Em 2024, até agora, houve um único caso, ocorrido em Janeiro.
Cardoso sublinha que a profissão por si só é um desafio com factores que levam essa categoria profissional a possuir um alto grau de vulnerabilidade relativamente ao sofrimento psíquico, em decorrência da rotina de constante perigo e tensão.
“O nosso desafio neste momento é criar mecanismos de intervenção cada vez mais eficazes, com vista à detenção precoce dos problemas, nomeadamente do ‘stress’ ou da depressão. Uma vez reconhecidas os sintomas da depressão, temos ainda o desafio de vencer posteriormente a resistência e a aceitação e seguimento, consistência durante o processo de tratamento”, sublinha.
O director do SES considera que o serviço está bem representado na Praia, com uma estrutura de apoio e suporte que tem respondido de forma célere aos casos. No entanto, reconhece que é preciso aumentar a capacidade de intervenção nas restantes ilhas.
“Os nossos psicólogos residentes na cidade da Praia podem estabelecer contactos telefónicos e prestar os primeiros apoios e suportes imediatos em caso de crise nas ilhas, em estreita colaboração com os técnicos de saúde local”, acrescenta.
Conforme este responsável, o SES ainda não dispõe de um protocolo específico para identificar os agentes que necessitam de apoio psicológico. O tratamento é voluntário e, após o diagnóstico, o Serviço Social trabalha em conjunto com as autoridades de saúde local para garantir o melhor suporte possível aos agentes.
“Caso seja recomendado, o efectivo costuma ser afastado do serviço por um período temporal para tratamento, com possibilidade de readaptação do trabalho de acordo com a sua condição de saúde”, disse, assegurando que caso seja necessário, o agente é desarmado.
Cardoso também ressaltou o crescimento contínuo na procura pelos serviços oferecidos pelo SES.
“Os dados têm mostrado um aumento significativo na demanda por nossas intervenções e apesar de casos ligados ao álcool serem frequentes, não os considero alarmantes. Temos conseguido intervir e encaminhar os indivíduos para os centros terapêuticos adequados”, observa.
“Ambiente hostil contribui para os casos de depressão”
Ao Expresso das Ilhas, sob anonimato, um agente da PN afirma que dentro da instituição o extremo da depressão, nesse caso, o suicídio, tem acontecido frequentemente.
“Eu, enquanto agente, posso afirmar que dentro da Polícia Nacional há vários casos de suicídio”, garante.
Este agente destaca a falta de apoio institucional para lidar com problemas de saúde mental, apontando um ambiente de trabalho “hostil” e de “descaso por parte da administração policial”.
“Os agentes com depressão sempre dão algum sinal no trabalho e é visível para todos. São agentes com problemas de álcool, problemas de droga. Mas, a PN ao invés de auxiliar, ajudam a afundar”, lamenta.
“A sensação que fica, para nós agentes, é que estamos presos dentro da instituição. E digo mais, só não há mais casos de abandono do que se tem registado porque não há outras oportunidades dentro do país. Por isso muitos abandonam e emigram”, desabafa.
No caso de abandonos, a mesma fonte precisa que se deve à falta de oportunidades de progressão profissional e o descaso com a formação e o bem-estar dos policiais.
“Se o agente mostra que é inteligente, que quer estudar, ou que tem uma visão diferente, procuram fechar ao máximo todas as portas”, acredita.
Outro ponto de desânimo que pode levar à depressão, conforme este agente, tem a ver com as condições de trabalho precárias e a sobrecarga horária.
“O trabalho do Polícia é dos mais stressantes e trabalhamos com uma enorme carga horária. Os agentes de esquadra trabalham todos os dias, de domingo a domingo e quando quer estudar não lhe facilitam nada”, diz.
Diante desse cenário, o agente diz que muitos, desanimados, acabam por se deprimirem. Nesse sentido, reitera que a PN precisa trabalhar na prevenção desses casos.
“É preciso um olhar mais atento para os agentes com sinais de alerta ou que passam por situações de ‘stresse’ contínuo. É preciso fazer mais do que tem sido feito até agora”, considera.
Não há confiança nos psicólogos que também são agentes – sindicato
O presidente do Sindicato da Polícia Nacional (SINAPOL), Arlindo Duarte, ressalta que a estrutura organizacional da PN, permeada pela hierarquia e disciplina, pode criar um senso de ordem e pertença, mas quando excessivamente rígida, pode impactar negativamente nos direitos humanos, levando a crises emocionais e psicológicas.
Duarte aponta diversas causas visíveis para a depressão entre os agentes da PN, como baixos salários, excesso de carga horária, condições precárias de trabalho e a ideia de hierarquia exercida de forma ditatorial.
Assim sendo, afirma ser necessário reconhecer e abordar esses problemas para garantir o bem-estar dos agentes.
“Acreditamos que as causas mais visíveis que provocam depressão são o baixo salário à função exercida e riscos submetidos; excesso de carga horária, que interfere directamente no bem-estar social e familiar; algumas instalações policiais com condições pouco dignas para trabalhar; a ideia de hierarquia por vezes exercida com espírito ditatorial; promessas não cumpridas por parte dos poderes públicos”, enumera.
Em relação aos programas de apoio, Duarte menciona que o sindicato tem trabalhado em cooperação com clínicas de saúde para fornecer serviços aos associados, incluindo consultas de psicologia, psicoterapia individual e em grupo, palestras preventivas e programas específicos em diferentes fases da vida do agente.
Uma das salas de atendimento psicológico, incluindo crianças, do SES.
“Os nossos agentes têm criticado os psicólogos (agentes) da instituição, alegando não haver confiança, visto que, a nossa instituição é hierarquizada e tem a possibilidade dos seus problemas serem espalhados na instituição devido à cadeia hierárquica. Neste contexto, têm de procurar clínicas privadas e terão que suportar os custos na totalidade, visto que os serviços de segurança social não fazem cobertura a esses tipos de tratamentos”, revela.
Relativamente ao estigma em torno da saúde mental na comunidade policial, Duarte enfatiza a importância de denunciar casos que possam levar a transtornos psicológicos, a fim de que medidas adequadas sejam tomadas, incluindo o tratamento dos afectados.
Arlindo Duarte afirma que é crucial garantir que os agentes recebam o apoio necessário sem estigmatização.
O sindicalista informa que a SINAPOL está a trabalhar em conjunto com o Ministério da Administração Interna e a Direcção Nacional para implementar acções de prevenção, investir em estudos, treinos e melhores condições de trabalho.
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Ambiente laboral influencia significativamente a saúde mental
A cultura e o ambiente organizacional desempenham um papel crucial na saúde mental dos funcionários, segundo a psicóloga Evelyse Mette.
“Quando o clima organizacional é desfavorável, marcado por competições, conflitos não resolvidos e intrigas, isso pode desestabilizar profundamente o mundo psicológico dos funcionários”, salienta.
Além disso, as condições de trabalho, incluindo recursos materiais, espaço físico e carga de trabalho, desempenham um papel importante no bem-estar dos funcionários.
Mette ressalta que, muitas vezes, a sobrecarga de trabalho e as condições desfavoráveis podem levar a sintomas comuns de depressão, como tristeza, falta de esperança e desesperança relativamente ao futuro.
“Os transtornos depressivos persistem como a principal causa de incapacidade laboral em todo o mundo”, afirma. O tratamento, que pode incluir intervenções farmacológicas e psicoterapêuticas, muitas vezes requer que os profissionais se afastem do trabalho para se concentrarem na sua recuperação, afectando assim o seu desempenho.
Quanto às políticas organizacionais, Mette enfatiza a importância de criar uma cultura de promoção da saúde mental e implementar acções rotineiras que apoiem o bem-estar dos funcionários.
Isso pode incluir a disponibilização de serviços de psicologia, a promoção de espaços de debate sobre saúde mental e a implementação de práticas que coloquem o bem-estar humano acima de considerações financeiras.
No entanto, a psicóloga lamenta a falta de dados específicos sobre a pressão enfrentada por diferentes profissionais em Cabo Verde.
“A nível académico, temos iniciado alguns projectos de investigação e na revisão bibliográfica que nós fazemos daquilo que são as fontes disponíveis em Cabo Verde, sempre notamos que há carências e faltas de dados em áreas diversas. Mas, pela pesquisa que fizemos, a maioria dos casos de depressão é a nível de profissionais de saúde”, revela.
Contudo, Mette frisa que esse indício pode ser explicado com o facto de haver mais estudos e mais atenção para com os profissionais da área médica. A mesma atenção, reforça, não é direccionada a outras categorias profissionais.
A psicóloga também levantou a preocupação com a saúde mental dos professores, sugerindo que essa classe possa ter um alto índice de sofrimento psíquico. No entanto, salientou a falta de dados concretos para alicerçar essas observações.
Nesse sentido, ressalta a necessidade de mais pesquisas e estudos para entender melhor os desafios enfrentados por diversas categorias profissionais e, assim, desenvolver estratégias de apoio mais eficazes.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1161 de 28 de Fevereiro de 2024.