Falhas nas ligações deixam empresários com a produção encalhada

PorJorge Montezinho,15 abr 2023 8:04

O problema não é recente, mas basta passar os olhos pela imprensa dos últimos três meses e descobre-se a principal dificuldade com que se debate o país: os transportes marítimos. As queixas sucedem-se e cruzam-se – dos passageiros, do governo, da concessionária – e as soluções tardam. Ainda no fim-de-semana da Páscoa, foi impossível escoar os produtos que eram necessários nas quase superlotadas ilhas turísticas.

“Temos este país, que é um micro país, com um micro mercado, ou funcionamos em sistema, com um foco que é o turismo, ou então não vale a pena”, alerta João Santos, empresário e administrador da SOCIAVE.

A empresa avícula de São Vicente tinha, e tem, mais de 200 mil ovos que deviam ter ido para os mercados turísticos do Sal e da Boa Vista. Deviam, mas não foram.

Tudo começou com a avaria do navio Dona Tututa. Para o substituir é chamado o Praia D’Águada, que tem estado parado. O Praia D’Aguada sai no final do dia e leva só passageiros, recusando transportar carga.

“Eu tentei de todas as formas falar com vários responsáveis para mostrar que nós dependemos do turismo, que os hotéis iam ter problemas na Páscoa por causa de fornecimentos, e os armazéns da CV Interilhas cheios, com carga nossa e carga de outros para abastecer o Sal. E falar em abastecer o Sal e abastecer a Boa Vista é abastecer o turismo, porque a população autóctone é insignificante. Daí que pedisse que me levassem pelo menos os produtos perecíveis: ovos e queijo, que estavam cá para fornecimento dos turistas na Páscoa. Não o fizeram”, explica João Santos ao Expresso das Ilhas.

Este período da Páscoa, os hotéis na Ilha do Sal tiveram praticamente casa cheia, com uma taxa de ocupação que variou entre os 70 e os 80%.

“Em Cabo Verde, sabia-se que na Páscoa os hotéis iam estar cheios, toda a gente sabia isso, e hotéis cheios significa maior consumo. Temos hotéis com 2.000 pessoas, 3.000 pessoas, sem abastecimento de ovos, queijo, e outros produtos que iam de São Vicente. Alguma coisa não está bem”, diz o administrador da SOCIAVE.

O mercado turístico

Em 2022, os hotéis cabo-verdianos receberam um recorde de 835.945 turistas e mais de quatro milhões de dormidas, segundo dados avançados no final de Março pelo INE, ultrapassando o máximo anterior, 819.308 turistas em 2019, antes da pandemia.

Ainda no ano passado, a ilha do Sal liderou a procura, com 61,8% do total das entradas, seguida da Boa Vista com 21,0% e Santiago com 9,3%. O turismo continua a representar 25% do PIB do país.

“O que me deixa preocupado”, diz João Santos, “é que elegemos o turismo como alavanca de desenvolvimento de Cabo Verde e, entretanto, não vejo qualquer iniciativa de dar uma atenção especial ao sector. Como é que o Praia d’Águada, que está parado há seis meses, em duas ou três horas está apto para viajar? Como é que há avaria de dois barcos e o Praia d’Águada, que, entretanto, já chegou a São Vicente, vai voltar a parar? Vai ficar um único navio a circular? Os hotéis continuam cheios e não há fornecimento. Não imagina a aflição que os gestores estão a ter no Sal e na Boa Vista”.

“Podia-se mandar alguma quantidade por transporte aéreo, mesmo custando os olhos da cara, mas também não há aviões”, reforça o empresário. “Este desabafo é para chamar a atenção ao país, ao governo, à empresa concessionária que, ou damos atenção especial às ilhas de onde vem o dinheiro ou então deixemos de falar de turismo”.

O plano B

No passado mês de Março, o ministro do Mar disse que os níveis do serviço prestado pela CV Interilhas são “insatisfatórios”, admitindo a possibilidade do Estado comprar navios.

“Os níveis de serviço dos transportes marítimos estão muito abaixo daquilo que é necessário, que está contratualizado, portanto, é algo indesmentível. Eu, como ministro da tutela, não posso negar este facto”, afirmou Abraão Vicente, questionado pelos deputados durante a sessão parlamentar ordinária, na Assembleia Nacional.

Na altura, as ligações eram asseguradas apenas por dois navios, em vez dos cinco previstos no contrato assinado entre o governo e a concessionária. Entretanto, em pleno fim-de-semana de Páscoa, a crise dos transportes marítimos agudizou-se com a avaria do Dona Tututa, dano entretanto resolvido.

“O Tututa ficou pronto no final da semana e zarpou para a Praia, no domingo, vazio. Porque não ficou em São Vicente até segunda de manhã e assim levava as cargas perecíveis que estavam nos armazéns? Porque não esperou umas horas para levar a carga que está nos armazéns da companhia há uma semana? Há coisas que não entendo”, refere o administrador da SOCIAVE.

“Claro que a CV Interilhas é uma empresa privada, mas é subsidiada pelo Estado. Se fosse totalmente privada podia fazer o que quisesse”, continua João Santos.

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O plano de negócio da SOCIAVE é crescer com o turismo que, actualmente, já representa acima de 30% da facturação da empresa de São Vicente, mas sofrer um revés destes complica a relação de confiança que já havia entre a empresa e os operadores turísticos.

“Há o prejuízo para a imagem da empresa, é a confiança que fica beliscada e esse prejuízo é incomensurável, estamos a falar de uma relação de confiança que demorou mais de dez anos a ser conquistada”, diz João Santos.

Os operadores turísticos tiveram de ser conquistados, foi preciso ver o investimento na produção – tanto na qualidade como na quantidade – e na certificação [a ISO 22000, conseguida em Março de 2018]. “Há vinte anos que ouvimos os políticos dizer que é preciso que os hotéis comprem no país, mas como? Se não há regularidade, nem previsibilidade, que operador vai confiar no produto nacional? Este é que é o problema”, sublinha o administrador da SOCIAVE.

“Estamos a falar dos maiores operadores turísticos do país, quando se falha numa época crucial, como a Páscoa, com os hotéis cheios, é claro que na próxima vez pode voltar a importar em vez de optar pelo mercado interno”, explica João Santos.

“Têm sido momentos difíceis para a indústria nacional e não vejo vontade de funcionarmos em sistema, cada um rema para o seu lado, portanto andamos a brincar”, afirma o administrador da SOCIAVE.

“Sempre disse que se os governos não resolvem os problemas de transporte, não fazem nada. A mobilidade é a prioridade das prioridades. E não podia estar calado, senão isto começa a ser a normalidade. A carga é tão importante como os passageiros. O turista que vem para Cabo Verde, se não for bem tratado vai para outro destino. Ou funcionamos em sistema ou perdemos este filão”, resume o empresário.

O PEDS e o transporte marítimo

O Plano Estratégico de Desenvolvimento Sustentável 2022-2026, o PEDS II, diz que os portos, os transportes marítimos e a logística estão interrelacionadas e interdependentes e são importantes para o desenvolvimento da economia do mar e a transição do país para economia azul. “Cabo Verde tem uma forte dependência dos transportes marítimos, nomeadamente, em termos de abastecimento e os portos são as interfaces na transferência de um modo de transporte para o outro, até as mercadorias chegarem ao consumidor final”, lê-se no documento.

“No entanto”, refere o PEDS II, “persistem ainda desafios para um transporte mais moderno, com embarcações modernas, novas e confortáveis, bem como, maior integração com o turismo e melhor interface directo entre transporte marítimo, terrestre e aéreo, o qual é praticamente inexistente”.

Segundo os planos do governo, até 2026, serão concluídos: (i) a subconcessão dos Portos de CV e a construção de centros de logística, para a modernização do fluxo das mercadorias em Mindelo, São Nicolau e Santiago (iii) a construção do Terminal de Cruzeiros do Porto Grande; (iv) os projectos IT, com vista a melhorar a operabilidade dos sistemas existentes no sistema portuário, no âmbito da digitalização e descarbonização, a construção da Fase III de Expansão do Porto da Palmeira, a construção/reabilitação de Gares Marítimas Portuárias (Porto de Tarrafal de São Nicolau, Sal Rei na Boa Vista, Porto de Vale de Cavaleiros no Fogo e Porto Grande no Mindelo).

Também segundo o PEDS II, no horizonte 2030, “com os investimentos feitos e serem feitos” espera-se melhorar as a capacidades das infraestruturas, modernização e especialização portuária com inserção na economia regional e mundial, desenvolvimento dos portos azuis, modernização e maior conforto dos transportes interilhas e desenvolvimento da cadeia de logística.

A CV Interilhas, liderada (51%) pela portuguesa Transinsular, do grupo ETE, e com a participação de armadores cabo-verdianos, detém desde agosto de 2019 a concessão do serviço público de transporte marítimo de passageiros e carga, um acordo válido por 20 anos.

Na passada quinta-feira, o vice-primeiro-ministro, Olavo Correia, afirmou que o governo vai aprovar um novo acordo de concessão dos transportes marítimos. “Nos próximos dias vamos dar notícia em relação ao contrato de concessão, o governo através do seu porta-voz e depois os dois ministros que têm o sector operacional, o ministro do Mar e também eu na qualidade de ministro das Finanças que intervém nessa operação. E, portanto, vamos conseguir melhorar ainda mais o nível de serviço dos transportes marítimos em Cabo Verde nos próximos tempos. Estamos engajados, determinados em nome do governo e com mandato claro do senhor Primeiro-Ministro para que possamos conseguir melhores resultados rapidamente e estou convencido que vamos consegui-lo”, concluiu o ministro das Finanças. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1115 de 12 de Abril de 2023.

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Autoria:Jorge Montezinho,15 abr 2023 8:04

Editado porDulcina Mendes  em  9 jan 2024 23:28

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