Responsabilidade não rima com arrogância

PorA Direcção,16 ago 2024 9:54

Um dos grandes desafios das democracias na actualidade é manter os titulares de cargos políticos accountable, ou seja, sujeitos à prestação de contas e obrigados a assumir a responsabilidade por decisões, actos e omissões produzidos no exercício das suas funções. Mais difícil é fazê-lo quando há uma tendência crescente para o protagonismo individual em simultâneo com exibições muitas vezes extravagantes de privilégios associados aos cargos.

Com normas e instituições sob permanente pressão ou a serem ultrapassadas por esse tipo de comportamento enfraquecem-se as condições para a responsabilização política, contribui-se para tornar os cidadãos ainda mais descrentes e cínicos e faz-se da política uma espécie de entretenimento perverso.

Pelo que se vê em outras paragens, daí não vem nada de bom. Em Cabo Verde também se nota que muito da luta política passa por desafiar práticas e posturas habituais. Já há quem queira ir além do normalmente aceitável e expectável para construir figuras públicas que se apresentam como autênticas, como agentes de mudança contra as elites e em colisão com normas e instituições vigentes. Perante essas incursões, os mecanismos de responsabilização política ou se mostram ineficazes como nas situações conhecidas de bloqueio municipal ou arrastam-se sem grandes possibilidades de se chegar a uma conclusão nas comissões de inquérito parlamentear dando azo a permanente chicana política. Em outros momentos fica-se com a percepção que cumplicidades cruzadas procuram dificultar que tudo seja esclarecido, que as responsabilidades sejam assacadas e que o país tenha a possibilidade de avançar para além das tricas políticas e para um debate mais construtivo.

Esta segunda-feira, dia 12 de Agosto, foi publicado finalmente o relatório da Inspecção das Finanças à presidência da república. O pedido para a sua realização tinha sido formulado pelo próprio presidente da república a 23 de Dezembro de 2023 na sequência da notícia vinda a público de pagamento de salários à “primeira-dama”. Também foi solicitado ao Tribunal de Contas uma auditoria, mas até agora não há conclusões publicadas. Pelo relatório da inspecção geral das finanças, após mais de seis meses, constata-se que o pagamento “é irregular e não tem suporte na legislação em vigor” e recomenda-se que se deve proceder à reposição do montante.

Isso, porém, é o óbvio considerando que não há nada na legislação que pudesse prever o pagamento, nem havia precedente na II República que o justificasse. Para além de tardio, o que espanta é que, meio ano depois, no exercício do contraditório ao relatório da inspecção geral das finanças, a casa civil da presidência ainda insista na mesma linha de argumentos expressa na Directiva nº 01/CCC/2023 que autorizou o pagamento “irregular”. O presidente da república publicamente poderá ter suspenso o pagamento de salário e retirado a viatura e segurança pessoal à “primeira-dama” num gesto de reconhecimento da falha, mas nos serviços da presidência da república parece que tudo o resto ficou como estava. O relatório veio dar conta de várias outras irregularidades e a condição de cônjuge não foi clarificada.

Aparentemente, enquanto se espera pelos resultados das inspecções e das auditorias, a atitude é de, no essencial, se continuar como antes mesmo que a percepção pública seja de perplexidade e mesmo de censura. E quanto maior for a demora na produção e homologação dos mesmos, melhor. O esclarecimento do público e a correcção dos procedimentos não parecem ser prioritários. Pelo contrário, como se vem tornando comum nos choques de protagonismo na democracia, a postura de muitos titulares de cargos públicos é de desafio da opinião pública, quando chamados à responsabilidade. Não é a que seria de esperar de, com humildade, cumprir o dever de defesa e promoção dos bens e valores da ordem constitucional.

Na semana passada viu-se um outro exemplo de como as expectativas das pessoas são goradas. Com dificuldades evidentes no domínio dos transportes e outros sectores-chave como energia e água muitos puseram a esperança nas mexidas no governo que há meses esperavam, desde que em Abril dois membros do governo foram designados candidatos a presidente de câmaras municipais. A postura típica de desafio prevaleceu e como disse o primeiro-ministro é ele “é que sabe em que momento e em que condições é que fará maior ou menor ajustamento ou eventualmente remodelação”.

Aparentemente não interessa a escolha do momento para os designar candidatos autárquicos com prejuízo para a performance dos sectores de actividade com ministro a prazo e o aumento de atrito político com os municípios por causa do anúncio. Mesmo quando o ministro por conta própria dá por findo o exercício, espera-se uma semana para produzir um titular. E mais uma vez ao invés de esperadas mexidas vai-se para os ajustamentos que se tornaram habituais sempre que, por qualquer razão, o governo perde algum membro. Não parece haver nem visão, nem estratégia por detrás das novas nomeações. Mas é de visão e estratégia que o país precisa se tem que melhorar a sua produtividade e sua competitividade. Segundo o relatório do Estado da Economia de 2023 do BCV, o menor contributo da produtividade total dos fatores (PTF) foi um dos determinantes para o abrandamento do crescimento do produto nacional (PIB) em 2023 e continua em média, a um nível considerado baixo, condicionando o potencial de crescimento da economia.

Espera-se de todos os titulares dos cargos políticos que exerçam as suas funções com foco na prossecução do interesse público procurando controlar a arrogância que naturalmente a proximidade do poder distila e mostrando humildade na busca de soluções que os problemas complexos do país aconselham. Para se manter nessa linha é fundamental que os mecanismos de responsabilização funcionem tempestivamente e os titulares dos cargos vejam nesse seu dever de preservar a ordem constitucional e no respeito pelo princípio democrático a expressão mais profunda da sua vontade de servir.

É possível ter protagonismo político, ganhar eleições e governar sem ir pelas vias tortuosas de excitação de medos e ressentimentos e sem transpirar teimosia e ideias fixas. Quando tudo parecia ir num caminho sombrio nas eleições americanas, a campanha de alegria de Kamala Harris veio lembrar que pode haver uma outra via. Há pois esperança para um outro tipo de política, mais sintonizado com as necessidades das pessoas e da comunidade, mais responsável e solidária e mais produtiva e construtiva. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1185 de 14 de Agosto de 2024.

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Autoria:A Direcção,16 ago 2024 9:54

Editado porAndre Amaral  em  3 dez 2024 23:27

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