DizCorrendo: O 25 de Abril que nunca aconteceu

PorBrito -Semedo,25 abr 2024 10:11

O 25 de Abril, pelos valores que propugnava, nunca aconteceu em Cabo Verde, no sentido em que foi uma fraude, muito por culpa dos militares portugueses (Delegação do Movimento das Forças Armadas, MFA, e das Forças Armadas Portuguesas, FAP) aqui estacionados –com “a total identificação por parte dos militares com os ideais de luta do PAIGC” – e pelo projecto de poder trazido pelo grupo que veio de Conacri, com áurea de combatente e de libertador.

O 25 de Abril foi, por isso, uma fraude aqui nas ilhas no sentido em que o termo é utilizado para descrever actos enganosos ou desonestos com a intenção de obter ganhos pessoais e políticos ou prejudicar outra pessoa sabendo que isso geralmente envolve a manipulação de informações, documentos ou sistemas para obter benefícios, no caso, o de poder decidir o destino de um povo.

Liberdade efémera

Posiciono-me a partir do lugar onde me encontrava quando aconteceu a Revolução de Abril, utilizando São Vicente como o meu 'lugar de fala'. Esta referência destaca a importância (relativa) da minha experiência pessoal de 22 anos, na altura, estudante do Seminário Nazareno, para a compreensão da minha perspectiva e dos meus argumentos sobre esse facto político.

Recorro-me, igualmente, do auxílio da realidade ficcional histórica de Teixeira de Sousa e da memória como auxiliares da construção da História.

Em São Vicente respirava-se liberdade, alegria e esperança no Primeiro de Maio após o 25 de Abril.

“Os largos e as ruas encheram-se de povo, os sindicatos, os clubes desportivos, até os cães se incorporaram na gloriosa festa do Primeiro de Maio que se assinalava após o 25 de Abril. […] Drapejavam bandeiras, exibiam-se dísticos, soava música por todo o lado, estrelejavam foguetes, gritavam-se slogans, aliás bem ensaiados.

Percorrida meia cidade, ocorreu a programada concentração na pracinha da igreja e da Câmara Municipal. O espaço era pequeno demais para tanta gente. Os moradores do sítio franquearam as suas portas, janelas e varandas para quem as quisesse utilizar. Os Passos do Concelho viraram edifício do povo. O salão nobre abarrotou-se de cristãos. […].

Dois homens agarraram o Dr. Herbert e levaram-no aos ombros até lá acima, ao salão nobre […].

‘Todos devemos pensar que o futuro se acha agora nas nossas mãos. Não entreguemos a outro aquilo que nos compete a nós realizar […] agora vamos trabalhar em liberdade, e trabalhar mesmo, sem atitudes emotivas, sem radicalismos ideológicos. E pensar sobretudo que estas mãos não servem só para aplaudir […]. De futuro vão servir para trabalhar’” – Teixeira de Sousa, Entre duas Bandeiras, 1994, pp. 24-27.

A partir dessa data, e até 31 de Dezembro, quando foi empossado o Governo de Transição, integrado pelo major José Manuel Vaz Barroco, Carlos Reis, Amaro da Luz e Manuel Faustino, Ministros, respectivamente, da Administração Interna, da Justiça e Assuntos Sociais, da Coordenação Económica e Trabalho e da Educação e Cultura[1] – ensaiou-se um simulacro de revolução e de luta armada.

“Tinha-se a impressão de que o Carnaval voltara mais ruidoso agora, com multidões desfilando, gritando, empunhando bandeiras, cartazes, outros símbolos, punhos erguidos, slogans em coro, cornetas, apitos, canzoada ladrando atrás. As fachadas e os muros encheram-se de dizeres: o fascismo não passará, abaixo o colonialismo, morte aos cachorros de dois pés, independência já, fora com os mondrongos, povo unido jamais será vencido, viva a unidade Cabo Verde-Guiné, Viva o PAIGC. Desde o celebérrimo 25 de Abril o ambiente era esse, nas ruas, nos largos, até no campo de football. Os cortejos e os barulhos findavam sempre na Praça Nova, com atitudes e actos provocatórios”. – Teixeira de Sousa, Entre duas Bandeiras, 1994, p. 21.

[Os do Grémio Recreativo do Mindelo] “Achavam uns que as ilhas deviam permanecer portuguesas, uma vez que haviam sido achadas e povoadas pelos portugueses. Outros opinavam que a velha ideia da adjacência, como a dos Açores e da Madeira, seria o estatuto correcto. Outros ainda, que o caminho mais justo seria o da autonomia administrativa sob a soberania portuguesa. Ninguém simpatizava com a tese de independência total. O arquipélago era demasiado pobre para aspirar a Estado independente”.

Liberdade capturada

No tempo percorrido entre o momento histórico da Revolução dos Cravos e a independência política de Cabo Verde, as ilhas viveram um dos momentos mais conturbados da sua História recente. Houve a manipulação da população, sobretudo dos jovens estudantes, amedrontamento de certos estratos sociais e das elites locais – “os intelectuais são lixo, lixo da nossa História, que devem ser colocados num saco e atirados ao mar” – silenciamento da Rádio Barlavento, eliminação das forças políticas da UDC (União Democrática de Cabo Verde) e UPICV (União dos Povos das Ilhas de Cabo Verde) e prisão dos “reaccionários inimigos do nosso povo”.

“Infelizmente, volto a repetir, vejo muito apetite totalitarista a estragar o acontecimento do 25 de Abril, muito revanchismo, Santo Deus, numa terrinha onde todos somos primos e compadres. Estou muito decepcionado com estes meninos barulhentos, implicantes, intolerantes, impositivos, avessos ao diálogo sereno, construtivo” – Teixeira de Sousa, Entre duas Bandeiras, 1994, p. 176.

A prisão do Tarrafal, fechada a 1 de Maio, voltou a abrir em Dezembro de 1974 pelos militares portugueses para receber os adversários políticos do PAIGC, os designados “inimigos do povo”, acusados de serem contra a independência nos moldes preconizados, “independência com o PAIGC”, “independência total e imediata”, “independência ou morte” e contra a “unidade Cabo Verde-Guiné”.

Mesmo depois da proclamação da independência, ou por causa disso, a sanha dos novos donos do poder continuou e abriram-se outros “Tarrafais” com prisões arbitrárias torturas e mortes, de várias pessoas muito conhecidas no meio mindelense, em 1977, acusadas de planearem “actos terroristas”, para São Vicente e Santo Antão; de um grupo de pessoas em Santo Antão, em 1981, por protestar contra a Lei da Reforma Agrária; julgamentos em Tribunal Militar onde os juízes, os procuradores e os advogados provisionários eram nomeados de entre os militares-combatentes vindos de Conacri.

Acordo de Independência

Em 2004, pelos 30 anos do 25 de Abril, em entrevista ao Público[2], Almeida Santos, Ministro da Coordenação Interterritorial, durante o período da descolonização, revelou como foi feito o Acordo de Independência de Cabo Verde:

“Ainda se nomeou um governador cabo-verdiano, mas foi demitido pouco depois, porque o PAIGC foi para lá fazer a mesma campanha eleitoral que tinha feito na Guiné.

O partido era o mesmo.

Pouco depois tinham aquilo dominado. E os militares fizeram pressão para que houvesse descolonização rápida. Também houve um ultimato de lá para cá, a dar cinco ou oito dias para o Governo português entregar o poder ao PAIGC, sob pena de entregarem eles lá. Ficámos de mãos atadas. Não podíamos julgar centenas de militares, tinha sido um plenário de militares e não podíamos substituí-los — “Nem mais um soldado para o ultramar”.

O Costa Gomes e eu ficámos sem saber e eu disse: “Vou pedir a demissão, vou explicar porquê, não estou para aturar isto.” Ele disse: “Ah, senhor ministro, veja lá o que pode fazer, o senhor é tão hábil, tem resolvido tantos problemas, veja se resolve mais um.”

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Lembrei-me: “Vou chamar o Pedro Pires.” Que era quem andava lá a fazer a propaganda revolucionária. Chamei-o e disse-lhe: “Você conhece este telegrama?” E ele: “Conheço.” E eu: “Então, agora?” Ele diz: “Os senhores perderam, nós ganhámos.” E eu perguntei: “Vocês ganharam o quê? Que guerra é que você ganhou em Cabo Verde? Quantos mortos é que tem lá?” Ele ficou um bocado chateado e diz-me: “Você é que me chamou, tem que me dizer o que quer.”

E eu disse: “O que quero é que você seja mais inteligente do que infelizmente alguns dos nossos moços que estão lá em Cabo Verde e que aceite uma consulta popular. Vocês ganham a consulta popular por 90 por cento e nós salvamos a face.” E ele disse: “O que é que ganho com isso?” Respondi: “Olhe, ganha a legitimação democrática do novo poder, nunca mais será discutido. Se você o recebe da mão de militares, toda a vida será discutido.” Ele disse: “Eu já percebi, estou de acordo, mas tenho de ir falar com os meus colegas do PAIGC e dentro de dois dias estou cá.” Respondi: “Então vá depressa que não temos tempo.”

Ele foi, veio, quando chegou disse-me que estavam de acordo. Eu disse: “Então sente-se aí.” Comecei a redigir o acordo, eu e ele, praticamente fi-lo sozinho, mas ele lá discutia uma palavra ou outra. E depois telefonei ao Costa Gomes a pedir uma reunião urgente com Mário Soares e Melo Antunes, que tinha novidades. Ele perguntou: “Boas ou más?” Respondi: “Não lhe digo pelo telefone.”

Chegámos lá, assinámos o acordo e ficou descolonizado Cabo Verde. Fiz uma lei eleitoral. Houve uma grande participação da população. Eles ganharam por 92 por cento. Elaboraram uma Constituição. Acabou. Salvámos a face.”

O Acordo de Independência, publicado na íntegra no Novo Jornal de Cabo Verde, de 26 de Dezembro de 1974, continha 19 artigos, dos quais se tratava da criação do Governo de Transição de Cabo Verde, da composição do mesmo Governo e da eleição de uma Assembleia representativa do povo de Cabo Verde, denominada Assembleia Nacional que, dotada de poderes soberanos e constituintes, teria por função declarar a independência do Estado de Cabo Verde e elaborar a futura Constituição desse Estado, só foi cumprido em parte.

Independência com moderação

O médico e escritor Teixeira de Sousa defendia a posição de uma independência com moderação,e disse-o a Michel Laban, em 1992[3]:

“A discordância maior foi a ideia de unidade Cabo Verde/Guiné-Bissau. Ora, eu não via que essa unidade fizesse o mínimo de sentido dada a disparidade dos valores culturais entre os dois países […].

Outra discordância foi eu ter advogado uma independência neutra, tanto em relação ao Leste [U.R.S.S.] como em relação ao Oeste [E.U.A.]. […].

A terceira discordância foi o meu combate à lusofobia […], chegando mesmo a preconizar uma certa colagem ao Portugal politicamente renovado […].

Finalmente, aproveito a ocasião para declarar que não me agradou nada o “apartheid” político praticado de início em relação a cabo-verdianos vivos e mortos, nados e criados num contexto colonial, inexorável nas suas consequências humanas”.

DizCorrendo sobre as Comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, celebrado em Cabo Verde pela primeira vez, em que muitos dos principais actores e donos da narrativa são aqueles que fizeram com que isso não tivesse acontecido. Só em 1990, quinze anos depois, com a mudança dos ventos da História, viria a haver o espírito do verdadeiro 25 de Abril com a conquista da Liberdade.

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Fonte:

ALMEIDA, São José (S.J.A.), “As que Pude Controlar Previram Consulta”, Entrevista com Almeida Santos. Público, 11 de Abril de 2004, p. 14.

CARDOSO, Humberto, O Partido Único em Cabo Verde – Um Assalto à Esperança. Praia: Edição do Autor, 1993.

LABAN, Michel, Cabo Verde – Encontro com Escritores, I vol. Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 1992.

MARTINS, Pedro, Testemunho de um Combatente. Mindelo: Ilhéu Editora, 1990.

PIRES, Sandra Cunha, Os Militares Portugueses e a Descolonização em Cabo Verde. Lisboa: Edições Colibri/Associação 25 de Abril, 2022.

TEIXEIRA DE SOUSA, Henrique, Entre duas Bandeiras. Lisboa: Publicações Europa-América, 1994.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1169 de 24 de Abril de 2024


[1]A 22 de Fevereiro de 1975 viria a ser nomeado o tenente-coronel de engenharia Vasco Fernando de Melo Wilton Pereira, Ministro do Equipamento Social e Ambiente.

[2]São José Almeida (S.J.A.), “As que Pude Controlar Previram Consulta”, Entrevista com Almeida Santos. Público, 11 de Abril de 2004, p. 14.

[3] Michel Laban, Cabo Verde – Encontro com Escritores, I vol., 1992, pp. 202-203.

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Autoria:Brito -Semedo,25 abr 2024 10:11

Editado porClaudia Sofia Mota  em  12 out 2024 23:25

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