Aprovada em 1945, a Carta conheceu uma das suas grandes concretizações a 10 de Dezembro de 1948, com a adopção da Declaração Universal dos Direitos do Homem (vocábulo “homem” aqui utilizado no seu sentido etimológico e não físico. Ou seja, no sentido de homo, palavra latina que significa “ser humano”, e não de “macho”, para o qual os latinos utilizavam a palavra vir, raiz etimológica que vamos encontrar, por exemplo, em “viril”, “virilidade”, ou até em “varão” – filho macho).
Os Direitos Humanos (DH), enquanto direitos fundamentais, inalienáveis, considerados inerentes e essenciais a todo o ser humano, constituem, todavia, uma conquista da humanidade, que culminou com a Revolução Francesa, em 1789. É, de facto, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, desse referido ano, que, concisa e seminalmente, esses direitos aparecem formalizados.
Na época, o que se pretendia era proteger o indivíduo contra a interferência do Estado na vida privada das pessoas e do abuso do poder por parte dos governantes sobre os governados. Isto é, assegurar as liberdades individuais, balizando, assim, a incidência dos Poderes Públicos, sobre a vida dos cidadãos.
Cedo, porém, se chegou à conclusão que esses direitos, ditos individuais ou civis, deviam ser complementados com outros de carácter social, económico e cultural. Se alguma resistência persistiu a esse respeito, elas esvaíram-se com a situação social gritante, criada com a Revolução Industrial. De facto, a protecção social dos trabalhadores (homens, mulheres e crianças) revelou-se indispensável à pessoa humana, na sua dignidade intrínseca. Daí em diante, esses direitos passaram a ser considerados, particularmente, depois da Primeira Guerra Mundial.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948 vem, assim, uniformizar e universalizar essa panóplia de direitos considerados indispensáveis às pessoas, para que possam, na sua condição humana e independentemente da sua origem, situação, credos ou local de residência, viver com liberdade e dignidade e realizar-se, individualmente ou em comunidade.
Mas a Declaração Universal dos Direitos do Homem é, como a própria Resolução que a aprovou proclama, “um ideal a ser atingido, para todos os povos e para todas as nações”.
As Resoluções da AG, como se sabe, não têm força obrigatória, embora tenham uma grande força política e moral e acabem por exercer enorme influência sobre o comportamento dos Estados.
Diga-se, no entanto, a Carta das Nações Unidas expressa, ela própria, a preocupação de conferir aos Direitos Humanos um lugar de referência, nas relações entre Estados e de considerá-los um dos desígnios da cooperação e da interdependência entre Povos.
O segundo e quarto parágrafos do Preâmbulo da Carta reafirmam, assim, a “fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e valor da pessoa humana, na igualdade de direitos para homens e mulheres e para os grandes e pequenos países, bem como a promoção do progresso social e melhor qualidade de vida…”.
Nessa conformidade, o artigo 1º, n. 3, da Carta enfatiza o propósito das Nações Unidas (NU) em realizar a “cooperação internacional, com vista a resolver os problemas internacionais de carácter económico, social, cultural ou humanitário, promovendo e encorajando o respeito pelos direitos humanos e pela liberdades fundamentais de todos…”.
Estas posições de princípio vêm mais explicitamente desenvolvidas nos artigos 55º e 56º, da Carta, expondo, o primeiro, aspectos relacionados com as liberdades fundamentais e a promoção de uma melhor qualidade de vida, saúde, emprego, educação e cultura, sem distinção de raça, sexo ou religião, e frisando, o segundo, que todos os Estados Membros se comprometem a assumir, conjunta e separadamente, acções tendentes a atingir a consecução dos propósitos enunciados no artigo 55º.
Entretanto, através do Conselho Económico e Social, previsto no Capítulo X, da Carta, ao qual é atribuída competência para fazer estudos, relatórios e recomendações, à intenção da Assembleia Geral e das agências especializadas, bem como preparar Convenções e convocar conferências internacionais com vista a dar corpo ao estabelecido na Carta, foram elaboradas, com o envolvimento e activa participação dos Estados Membros, duas Convenções Internacionais adoptadas pela AG, em 1966, uma sobre os Direitos Económicos, Socias e Culturais e outra sobre os Direitos Civis e Políticos e ainda um Protocolo Opcional, referente a esta última Convenção, que entraram em vigor em 1976, após as exigências formais de ratificação.
Mais tarde, em 1994, por Resolução da AG foi criado o cargo de Alto-comissário para os DH, e ficou expresso que, no desempenho das muitas tarefas atribuídas ao Alto-comissário, este devia guiar-se pelo reconhecimento de que “todos os direitos humanos – civis, culturais, económicos, políticos e sociais – são universais, indivisíveis, interdependente e interligados…”.
Ora, é liquidamente aceite, pela doutrina e pela prática internacional, que o conceito de DH é dinâmico. Sujeito, pois, a mudança e expansão. É assim que, hoje em dia, se fala muito dos DH, relativamente ao Ambiente ou ainda ao Património Comum da Humanidade.
Parece-me, assim, lógico que se associe a defesa do Património Cultural à ideia dos DH. E que os Povos (emprestando a expressão à Carta Africana dos DH e dos Povos), da mesma maneira que têm direito à paz e ao desenvolvimento, possam, igualmente, ter direito a preservar, fruir e defender o seu património natural, bem como o cultural
Nesse sentido, a UNESCO (agência especializada da ONU para a Educação, Ciência e Cultura) adoptou, em 1972, uma Convenção sobre o Património Mundial, que chama atenção precisamente para o facto de monumentos e locais históricos ou emblemáticos estarem a desaparecer, o que, no dizer daquela instituição internacional, constitui uma perda irreparável para o mundo inteiro e para cada um de nós, que importa evitar.
Ora, como frisei no início, a Carta da ONU vem sendo concretizada, designadamente, através de Resoluções da AG, por forma a permitir o desenvolvimento, densificação e materialização dos preceitos e propósitos contidos naquela Carta Magna.
Por seu turno, os Estados membro estão obrigados, por força do artigo 56º, da Carta, a providenciar medidas para atingir os objetivos preconizados no artigo 55º, a saber, o respeito universal pelos DH, conforme o prescrito na Carta e nos instrumentos internacionais que se lhe seguiram, designadamente nas Convenções Internacionais, acima referenciadas.
No plano interno, a nossa Constituição da República (CR) estabelece no seu artigo 7º, alínea k), como sendo uma das tarefas fundamentais do Estado, “proteger o património histórico-cultural e artístico nacional”.
A CR também diz, no artigo12º, que “o direito internacional geral ou comum faz parte integrante da ordem jurídica cabo-verdiana” e tem prevalência “sobre todos os actos legislativos e normativos internos de valor infraconstitucional”.
Creio, pois, que está delineado o quadro jurídico indispensável para, legítima, coerente e consequentemente, se legislar, no sentido de se densificar a previsão do artigo 59º, da CR, que consagra o “direito de petição e acção popular”, permitindo, assim, aos cidadãos, individual ou colectivamente, acionar processos tendentes a proteger os bens nacionais de carácter cultural, defendendo-os de eventuais agressões públicas (mas privadas, também), a que alguns têm sido sujeitos, impune e lamentavelmente.
Assim procedendo, Cabo Verde estaria, a meu ver, cumprindo com as suas obrigações internacionais, enquanto Estado membro das Nações Unidas e concretizando valores e preceitos constitucionais que têm a ver, ao fim e ao resto, com o ideal proclamado pela Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1097 de 7 de Dezembro de 2022.