A centralidade da morna na música cabo-verdiana: um debate em aberto

PorCesar Monteiro,10 out 2022 7:50

“Hipóteses têm sido apresentadas, mas nenhuma delas baseada no estudo técnico e comparativo desta canção, estudo que se nos afigura indispensável para se caminhar com relativa segurança neste domínio das origens”. (Baltasar Lopes)

Cabo Verde é um país arquipelágico caraterizado por interessantes processos de mestiçagem cultural e lógicas próprias, que se traduzem, de forma inequívoca, na sua música considerada uma das expressões maiores da identidade nacional, em resultado do encontro e da sobreposição de elementos musicais europeus, sobretudo de origem portuguesa, com elementos africanos, através de processos de povoamento dinâmicos e diferenciados iniciados na segunda metade do século XV. Portadoras de identidades híbridas, que resultam, igualmente, da sua privilegiada posição geoestratégica, do seu passado histórico e da sua insularidade, esta ilhas atlânticas, ainda cedo, se apropriaram de uma música conhecida, basicamente, pelo seu ecletismo, plasticidade e flexibilidade. Todavia, não se sabe, ao certo, o momento em que teria ocorrido e ganhado corpo, nas ilhas, o processo de miscigenação musical, que adveio do encontro in loco de diversos grupos e etnias portadores de diferentes tradições e culturas musicais sincréticas, donde resultou, igualmente, uma cultura identitária igualmente aberta, diversificada, plural e transnacional.

Partindo da sua natureza compósita, a música cabo-verdiana, uma das marcas mais poderosas da cultura que a sustenta, aparece, do ponto de vista da sua classificação em formas ou géneros, compartimentada e “engavetada” e é portadora de um conjunto de caraterísticas próprias e distintivas, que dificultam a sua definição e delimitação, de forma clara. A despeito de alguma dificuldade na sua definição teórico-conceitual e na sua tipificação, a música nacional carateriza-se, também, por ritmos específicos híbridos importados de diversas partes do mundo, reelaborados, reinventados e recriados no arquipélago, em sintonia com as comunidades cabo-verdianas emigradas. Marcado, assim, pela presença expressiva de culturas diversas importadas que se cruzaram e se miscigenaram em território nacional, o atual panorama musical nacional é abrangente e diversificado e inclui vários géneros representativos, mormente na linha da dita música tradicional ou popular com destaque para a morna, a coladera, o funaná, o kolá, o finaçon, a tabanca, as festas de bandera, o talaia-baxu, entre outros.

Considerada polifónica, na generalidade, a música cabo-verdiana carateriza-se, tanto do ponto de vista melódico como harmónico, pela influência europeia, enquanto o ritmo é marcado pela influência essencialmente africana. Do ponto de vista da métrica ou do compasso propriamente dito, os géneros que compõem o diversificado universo musical oscilam entre o compasso binário e o quaternário, na maior parte dos casos. Com efeito, a marca saliente da presença da cultura europeia na música cabo-verdiana, conseguida através de um interessante processo de miscigenação, evidencia-se particularmente através da morna, cuja criação autóctone se situa na primeira metade do século XIX. Fortemente arreigada na personalidade do cabo-verdiano, a morna, que se inscreve na linha da dita música tradicional, é tida como a prática musical dançante e singular mais representativa, transversal e transnacional e, ao mesmo tempo, o fator de unidade nacional, tanto nas ilhas quanto na diáspora. Nas duas últimas décadas, por causa de processos permanentes de aculturação, assiste-se, no país, a um movimento evolutivo e irreversível da música cabo-verdiana e, em particular, da morna, no sentido da sua inovação ou modernização, expressa através de novas roupagens e sonoridades e uma maior liberdade interpretativa e harmónica, dentro de determinados parâmetros e balizas consensualmente definidos.

A música tradicional cabo-verdiana, nos dias que correm, é cada vez mais robusta e dinâmica, tem uma dimensão fortemente identitária e simbólica, numa sociedade aberta ao mundo e marcada por profundas assimetrias e identidades plurais, mercê de dinâmicas verticais ascendentes e imparáveis, impulsionadas por processos de globalização. Por outro lado, mercê de sucessivos fluxos migratórios verificados ao longo da história do país, emergem novos géneros ou expressões musicais, como as valsas, a polca, as mazurcas e os lundus ou landús, a partir de processos de apropriação, reelaboração ou recriação, que integram, igualmente, o património artístico cabo-verdiano. As transformações por que tem passado a música cabo-verdiana, pelos menos nas duas últimas décadas, que se traduzem na emergência de novas abordagens e sonoridades, a partir da introdução de novos instrumentos, arranjos, acordes, acompanhamento e fraseologia musical, têm favorecido a sua vertente dita tradicional, em especial, a morna, no sentido da inovação ou modernização e na linha da coabitação entre as duas faces complementares do mesmo género.

Comparada com aquela que se compunha e se interpretava no passado, a morna, hoje, apresenta-se com novas roupagens e arranjos e expressa-se através de novos acordes e sonoridades, inclusive com influências notórias do jazz. No estádio atual do desenvolvimento do país, o aprimoramento técnico, o conhecimento, a pesquisa, a educação e a formação na área impõem-se como sendo os maiores desafios da música cabo-verdiana, em defesa da preservação, consolidação, valorização e inovação da sua dimensão tradicional, em particular. Nesse esforço permanente de trazer à luz aspetos de interesse ligados à investigação na área da música cabo-verdiana, em geral, coloco a tónica sobre a morna, consensualmente originária da Boa Vista, da zona de João Galego, no primeiro quartel do século XIX, entre 1825 e 1830, pelas mãos das primeiras kantaderas (ou cantadeiras), precisamente numa altura de rápido crescimento económico, social e cultural da ilha, com um andamento galopado e acelerado e com cunho satíricos.

Na sua consensualproveniência boa-vistense, que “parece mais validamente aceitável como hipótese de trabalho” (Baltasar Lopes, 2010, p. 213), a morna, depois, foi impulsionada e difundida, sobretudo, pelas kantaderas, particularmente em S. Vicente para onde emigraram mais tarde, por causa da fome que assolou a ilha da Boa Vista, naquele período histórico particularmente conturbado da vida das suas populações. Num prefácio de autor do seu livro intitulado Mornas Cantigas Crioulas, editado em Lisboa, em 1932, por J. Rodrigues & C., Eugénio Tavares afirma, lapidarmente, que a morna, nascida na Boa Vista, terá passado rapidamente, para a Brava, S. Vicente e outras ilhas, onde se adaptaria, tomaria a feição psíquica de cada povo e se adaptaria, num percurso cronológico linear e evolutivo. Na Brava da primeira metade do século XIX, a morna desembaraça-se da sátira boa-vistense, do andamento acelerado e do ritmo saltitante do tipo galope, distancia-se da sua origem marcadamente popular e, antes de se desterritorializar para S. Vicente, por volta de 1918, adquire o seu lirismo, “essa doçura harmoniosa que caracteriza as canções bravenses” (1932, p. 114), citando Tavares. Contudo, Nhô Eugénio, através da sua afirmação histórica sobre a origem boa-vistense da morna, que se transformaria logo em paradigma emergente, não esclareceu duas coisas essenciais: em que circunstâncias teria nascido a morna e como é que teria emigrado eventualmente para as outras ilhas.

Todavia, na ausência de provas documentais coetâneas, que se terão perdido no tempo e de alguma argumentação consistente, a afirmação do ilustre compositor, poeta e escritor bravense representa um apreciável contributo ao estudo da origem da morna, ainda que, no meu entender, tenha sido lacónica e insuficiente, do ponto de vista argumentativo. Seja como for, não se pode condenar Eugénio Tavares por causa da sua afirmação lapidar, sem ter em conta o contexto histórico e as circunstâncias concretas em que a fez, ainda que a música, pela sua multidimensionalidade e abrangência não se coadune com a linearidade, o determinismo ou o dogmatismo. Seria anacrónico e injusto crucificar Nhô Eugénio, tanto mais que, apesar da sua indiscutível autoridade intelectual, não era investigador, nem sequer tinha as ferramentas metodológicas e os instrumentos técnicos suficientes que lhe permitissem, na ocasião, comprovar ou rejeitar a afirmação categórica tal como a fez. Pelo contrário, pese embora o seu laconismo, a afirmação do poeta e compositor bravense, que deveria ter sido tomada pelos estudiosos da cultura cabo-verdiana de então como mera hipótese de trabalho e nunca como “tese”, viria a ser corroborada, em 1933, por Francisco Xavier Cruz (B. Léza) e reiterada sucessivamente por prestigiados inteletuais como Gabriel Mariano (1952) e Félix Monteiro (1985), entre outros.

Em boa verdade, o fausto que a Boa Vista experimentou na primeira metade do século XIX, entre 1820 e 1845, não explica, por si só, o surgimento automático da morna na ilha, porquanto este género se concentrou em Sal-Rei e excluiu as comunidades do interior da ilha. À partida, não se pode estabelecer nenhuma relação de causalidade entre o esplendor económico e cultural que privilegiou a Vila de Sal-Rei e o surgimento da morna que, pela sua origem popular, apenas se concentrou nas comunidades rurais da denominada ilha das dunas. Dito de outro modo, não se pode estabelecer nenhuma correlação de maneira diretamente proporcional entre a morna, género musical que emerge do seio das gentes do povo, do seu mundo de trabalho, do seu quotidiano, das questiúnculas e das intrigas amorosas, e o desenvolvimento económico da ilha concentrado exclusivamente, na altura, num único pólo. Na sua consensual génese boa-vistense, a morna é uma criação popular, isto é, teve uma origem popular, pertence exclusivamente às gentes do povo, citando Baltasar Lopes, “é uma espécie de folclore não urbano ou urbanizado que não foi contaminada, na altura, por qualquer espécie musical do meio urbano, mantendo as caraterísticas eminentemente rurais” (2010, p. 213).À medida que o género musical de origem popular ganha corpo e se afirma, verifica-se um processo de “aristocratização da morna” (Baltasar Lopes), primeiro, na Ilha Brava, a partir dos finais do século XIX, e, depois, em S. Vicente, já nos meados do século seguinte, que permitiu e facilitou a sua rápida evolução, numa transição do “quintal para o salão”, diria eu, num processo aristocratizante, que se estenderia às demais ilhas.

Os argumentos utilizados, posteriormente, a favor da “tese” de Eugénio Tavares sobre a origem boa-vistense da morna privilegiam, na análise, as dimensões histórica e económica e excluem, no entanto, outras abordagens também importantes de natureza etnomusicológica e antropológica, na linha da interdisciplinaridade. Por seu turno, José Alves dos Reis, conceituado professor da disciplina de Canto Coral, no Liceu Gil Eanes, armado de ferramentas musicológicas, sai em defesa de Eugénio Tavares, através de um artigo intitulado Subsídios para o estudo da morna publicado na Revista Raízes nº 21, junho de 1984, em que concluiu que o folclore é de criação regional e reitera o caráter singular da morna como género musical exclusivamente originário da Boa Vista. As conclusões do também músico Alves do Reis extraídas da observação cuidadosa e atenta de seis mornas de diferentes ilhas, a favor da sua origem boa-vistense, são interessantes, ainda que não se revelem suficientes para provar, em toda a evidência, do ponto de vista histórico, que esse género musical performativo e sempre em construção tenha nascido exclusivamente na ilha da Boa Vista. Seja como for e enquanto se não se conseguir provar ou testar, pela via da investigação científica, que este género musical poderia, também, ter nascido noutra ilha qualquer, refutando a “tese” de Eugénio Tavares, ter-se-á que continuar a aceitar, por tempo indeterminado, a paternidade (ou maternidade) boa-vistense da morna.

De facto, o estádio em que se encontra a música cabo-verdiana exige a definição de uma linha de investigação integrada, ancorada em diversas abordagens analíticas assentes na interdisciplinaridade, na interculturalidade e numa visão holística multidimensional e plural. No caso específico da morna, uma das expressões identitárias nacionais, que se rege por padrões rítmicos e melódicos próprios, que se vão consolidando e renovando no tempo e no espaço, a perspetiva da análise histórica é fundamental para a compreensão da consensual origem boa-vistense deste género suportada pela afirmação não documentada de Eugénio Tavares feita em 1930, em Nova Sintra. É certo que a dimensão de análise histórica da morna, género que se carateriza essencialmente pelo seu andamento lento, compasso quaternário e predominância do Lá menor, não se circunscreve, de forma alguma, apenas ao estudo das suas origens, nem se esgota no aprofundamento da sua génese. Ou seja, a dimensão histórica, que não pretende substituir as demais perspetivas analíticas e impor-se como a única opção alternativa, permite analisar, a partir de uma abordagem própria, os aspetos essenciais da música cabo-verdiana e, em especial, da morna, conhecer o seu percurso evolutivo e as suas principais tendências. Contudo, partindo de um ângulo próprio, a dimensão histórica de investigação sobre a música cabo-verdiana, seja qual for a sua expressão, deve afastar qualquer visão dogmática, obsessiva e redutora da realidade musical e, ao invés, apostar-se em abordagens plurais mais abrangentes, que ultrapassem as meras origens geográficas dos géneros musicais e, em última análise, tenham em linha de conta outras dinâmicas correlatas.

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Morna

Autoria:Cesar Monteiro,10 out 2022 7:50

Editado porAndre Amaral  em  10 out 2022 7:50

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