Uns, abordando o tema de forma directa e concisa – os ensaios; e outros, romanceando-a, umas vezes priorizando-a como temática principal e outras envolvendo-a em narrativas de vária ordem em que surge como assunto colateral. A constante é sempre a violência sob várias formas que a tornam naquilo que é: abominável, execrável, cruel, impiedosa, desumana e outros adjectivos que não permitem graus.
Isto, para dizer tão simplesmente que as várias formas de escravatura não se comparam. Enquadram-se todas nos adjectivos atrás referidos. E não é por acaso que ela constitui, consensualmente, a maior mancha, a maior vergonha, da História da humanidade.
Aliás, não é só a literatura que a expõe de forma quantiosa. Também o cinema, o teatro, a pintura e demais manifestações artísticas apresentam-na exuberantemente como denúncia de uma condição e situação que não se quer que se repita nunca mais na História da humanidade. E em todas essas manifestações tem ganhado ênfase, especial atenção, sobretudo pública e publicitada, o tráfico negreiro transatlântico, quiçá por ser aquele que foi de longe o mais estudado, por abundância de dados registados (escritos) e de testemunhos orais, e também precisamente por ser a que, no seu próprio tempo, gerou alguma controvérsia e polémica entre os seus praticantes.
Embora se tente sempre associá-la – a escravatura – quase que exclusivamente ao racismo, ela na sua essência e no seu fundamento teve sempre muito mais a ver com o poder e um pouco menos, absolutamente não despiciendo, com a raça, como se verá adiante. O próprio termo «escravo» veio do latim «slavus,», para designar eslavo, caucasiano da Europa Central e Oriental que era traficado pelos próprios europeus cristãos que os considerava pagãos excomungados e capturados maciçamente – sobretudo durante a dinastia Carolíngia – para serem vendidos aos árabes e turcos para os haréns, entre outros serviços. Com a conversão paulatina desses “pagãos excomungados” ao cristianismo foi escasseando o mercado europeu dando lugar à procura de outros mercados de escravos desencadeando uma transição do tráfico transeuropeu para o transariano e oriental (árabo-muçulmano).
A própria Roma de Júlio César chegou a ter mais de três milhões de escravos na sua quase totalidade caucasianos. Quem não se lembra da célebre revolta de escravos chefiada por “Spartacus” protagonizado na tela por Kirk Douglas? Com a campanha de África surgiriam com alguma relevância os núbios.
Sem querer entrar em matéria mais complexa e extensa, convém aqui registar que a concepção de “escravo” não é unívoca em todas as civilizações nem em todas as sociedades. Em África, antes da chegada do “Islamismo”, ela tinha contornos mais de servidão do que de escravatura. Aliás, em muitas comunidades africanas a propriedade privada nem sequer existia, pelo menos como a vemos hoje. O poder e a riqueza estavam nas mulheres e servos que ajudavam no trabalho agrícola ao darem uma parte estipulada do seu tempo. Conservavam algum respeito e dignidade e até podiam casar e constituir família.
Antes e depois do Tráfico Negreiro Transatlântico, o mundo fingiu ignorar o maquiavélico e não menos cruel e impiedoso tráfico negreiro árabo-muçulmano feito em nome do Islamismo que se iniciara no século VII, mais precisamente “no ano 652 quando o general árabe Abdallah ben Saïd impôs aos sudaneses um bakht (acordo) que os obrigava a entregar todos os anos centenas de escravos.” (contracapa do livro).
É sobre este último assunto que li, há bem pouco tempo, um livro – O Genocídio Ocultado – investigação histórica sobre o Tráfico Negreiro Árabo-Muçulmano” de Tidiane N’Diaye, editado em Portugal pela Gradiva numa 1ª edição em 2019 e que já vai na 5ª e cujo título original é “Le Génocide Voilé – Enquête Historique” – Editions Gallimard, 2008 – que gostaria de aqui deixar umas muito, muito breves impressões.
O livro é constituído por nove capítulos, dos quais destaco aqui três – o 6º – “Bestialização, Razias, Perseguições, ou África a Ferro e Fogo”, o 8º – “Extinção Étnica Programada por Castração Maciça” e o 9º – “«Síndrome de Estocolmo à Africana», ou a Amnésia por Solidariedade Religiosa” e Anexos onde saliento o intitulado “Versículos do Alcorão que encorajam a escravização dos não muçulmanos pelos muçulmanos”.
Trata-se de um livro que se lê com muito interesse dadas as valiosas informações sobre os vários aspectos do tráfico negreiro – o transariano e oriental e o transatlântico –, mas uma leitura pouco prazerosa pela extrema violência inerente à temática bem como pela crueza da narração.
O autor começa por nos dizer, cito: “A extensão desta tragédia [Escravatura árabo-muçulmana] inaugurada pelos árabes é, a este respeito, única: corresponde a uma forma inédita de escravatura, pela sua intensidade, pela sua natureza, mas sobretudo pela sua duração – 13 séculos – e pelo número de sociedades que a praticaram. Este empreendimento gigantesco poderia ter levado ao desaparecimento total os povos negros do continente africano. Tudo isto para satisfazer as necessidades expansionistas, mercantis, e «domésticas» das nações árabo-muçulmanas. (p. 14)
Tenhamos presente que a escravatura só foi abolida «oficialmente» na Arábia Saudita em 1962 e na Mauritânia em 1980 e que (cito) “Em Abril de 1996, o enviado especial das Nações Unidas ao Sudão já testemunhava um «aumento assustador do esclavagismo, do comércio de escravos e do trabalho forçado no Sudão»” e entre outras considerações pertinentes o parágrafo fecha com: “Decididamente, do Darfur do século VII ao Darfur do seculo XXI, o horror continua, desta vez com a agravante da limpeza étnica”. Acresce, ainda sobre a Mauritânia que (transcrevo) “em Junho de 1994, a Associação Americana pela Luta contra a Escravidão e a Amnistia Internacional recordavam que este país contava com 90 mil escravos negros que continuavam a ter proprietários”. (p.54)
Não quero, nem me parece curial, comparar o tráfico negreiro “Transariano e Oriental” com o “Transatlântico”, embora grandes diferenças de procedimentos, modus operandi, naturalmente existam, dada a geografia, a natureza e a abrangência dos objectivos perseguidos entre outros factores não desprezáveis e muito menos desprezíveis como as religiões. Um parâmetro é, contudo, comparável – a sua extensão: 13 séculos de transariana e oriental (árabo-muçulmana) contra os longos 4 de transatlântica (cristã e europeia); e, com alguma condescendência, também podemos aceitar a comparação para o número estimado de escravos que parece consensual – 17 milhões (9 do Transariano e 8 do Oriental) contra 12 milhões do transatlântico.
Quem não se coíbe de fazer a comparação é o autor do livro quando diz, cito: “Porém, embora não existam graus de horror nem monopólio da crueldade, podemos afirmar, sem risco de equívoco que o comércio negreiro e as expedições guerreiras lançadas pelos árabes muçulmanos foram, para a África Negra e ao longo dos séculos, muito mais devastadores do que o tráfico transatlântico” (p.186). E acrescenta mais adiante: “Para se ter uma ideia do mal, é preciso saber que esses mesmos observadores tinham estimado que, para caçar e raptar 500 mil indivíduos por ano, era necessário que morressem quase dois milhões (resistentes ou fugitivos)”. (p.186)
O autor, ao longo do livro, faz um historial do desenvolvimento da escravatura, antes e durante a expansão árabe no Continente africano e do papel da islamização na alteração da postura da população e sobretudo dos grandes chefes africanos – príncipes, reis e imperadores entre outros – que ao se converterem tornaram-se eles próprios negreiros. Fala dos conflitos fratricidas, interétnicos, gerados pela chegada dos árabes com vista a raptos de mulheres, crianças e homens para vender. Descreve com alguma minúcia as torturas, as atrocidades, as crueldades, as razias de populações inteiras de determinadas aldeias consideradas infiéis, fazendo, na sua fúria destruidora, quase sempre, tábua rasa dos negros convertidos, escravizando-os também.
Descreve a terrível e inclemente travessia do Sahara durante dias e dias acorrentados, com uma alimentação racionada e sem água fazendo desse Deserto um autêntico cemitério pois um número muito significativo de homens, mulheres e crianças sucumbia durante o trajecto – mapeado pelos cadáveres que se estendiam ao longo dele – por cansaço, falta de água e outras privações. Muito poucos resistiam à caminhada (cito): “Estes seres miseráveis percorrem 23 graus de latitude a pé, nus, sob um sol abrasador, com a sobrevivência assegurada por uma quantidade ínfima de água e um punhado de milho de 12 em 12 horas. Ao longo do trajecto de 14 dias necessários para ir de Tukkru a Djahuda, não se encontra uma gota de água, e a caravana prossegue a sua esgotante viagem dependente das cabaças abastecidas nos poços de Tukkru.»”(p.143).
Ao contrário do tráfico transatlântico em que desde o início vozes se levantaram contra a escravatura – os quakers, através de George Fox, em 1670 – diz-nos o autor, relativamente ao tráfico transariano e oriental, que nenhuma voz se ouviu no mundo árabe contrariando a escravidão, visando desta forma, principalmente os mais famosos intelectuais, designadamente os do século XI – o mais brilhante da civilização árabo-muçulmana. Bem ao contrário, alguns até a sustentavam baseando-se no preconceito da inferioridade rácica dos africanos alegando a sua condição de “animal” como afirmou (cito) o “erudito Al-Dimeshkri «…a sua mentalidade não está distante da dos animais»” e o historiador Ibn Khaldum escrevia (transcrevo): “Os únicos povos a aceitar a escravidão são os negros, devido a um grau inferior de humanidade que os põe próximos do estádio animal.” E, ainda, segundo o autor, este foi e é o pensamento que orientou os árabes ao longo destes 13 séculos. E quanto à denúncia, a única menção é atribuída pelo autor ao (cito):“historiador marroquino do século XIX Ahmad ibn Khalid al Nasiri (1834-1897) [que] reconhecia a legalidade da escravatura na lei muçulmana, mas denunciava a sua aplicação.”
No que diz respeito aos maus tratos, à crueldade e à desumanidade, o autor relata os procedimentos e lembra que o escravo mais cotado no mercado árabo-muçulmano é o eunuco. E descreve com alguma crueza os procedimentos para obtenção do eunuco. A mutilação genital obedecia a procedimentos rudimentares que provocavam uma elevadíssima taxa de mortalidade – cerca de 80%. Diziam respeito a dois tipos de mutilação: a dos testículos e a da totalidade dos órgãos genitais. E refere o autor: “Assim, distinguiam-se aqueles que tinham sofrido a ablação dos testículos e aqueles a quem fora removida a totalidade dos órgãos genitais. Apenas os da segunda categoria eram destinados à guarda dos haréns, pois os outros conservavam uma capacidade de erecção que, segundo os rumores públicos, tinha efeitos desastrosos nos haréns.” (p. 173).
O que o autor não frisa é que a castração não foi uma prática exclusiva dos árabo-muçulmanos. Também os europeus-cristãos a praticaram no tráfico transeuropeu para fornecimento de escravas e eunucos aos haréns árabes e turcos.
O autor não esquece os poucos escravos “bem-sucedidos” que acabaram por ocupar posições de destaque em algumas profissões em que eram amestrados, com particular realce nos exércitos em que muitos foram incorporados e alguns, até na administração geral e na do território, apesar do racismo, pela sua inquestionável competência.
Igualmente fala das resistências várias que chegaram a incorporar unidades totalmente constituídas por mulheres, designadamente uma de Daomé, que, após algumas vitórias, acabaram por sucumbir perante a superioridade em armamento e contingente dos Negreiros árabes, de forma digna e honrada preferindo a morte colectiva à entrega.
Também houve resistência pela via pacífica, esta fazendo interface com o colonialismo, no auge da escravidão transariana e oriental quando a “Lei de Abolição do Comércio de Escravos” foi decretada (24 de Junho de 1806) pelas duas Câmaras do Parlamento da Inglaterra submetendo o Atlântico a uma apertada vigilância enquanto tolerava no Continente africano as acções do tráfico negreiro árabo-muçulmano devido aos interesses mercantis europeus particularmente dos ingleses e franceses. A doutrina da resistência pacífica teve no senegalês Ahmadou Bamba, um dos seus principais mentores e, quiçá fundador, através de uma interpretação moldada e adaptada do Islamismo, criando, segundo o autor, uma religião – o mouridismo – que ele definia como (cito) “ainda que de inspiração islâmica, é a primeira grande religião negro-africana – transcendendo as barreiras étnicas – que contém desde a origem, na sua própria essência, uma forma de resistência espiritual e militante contra qualquer tentativa de alienação vinda do exterior. Tratava-se de uma renovação islâmica, vivificadora da identidade negro-africana e que acabaria por irritar seriamente as autoridades coloniais.” Era a primeira religião interétnica de raiz africana, que apelava a uma resistência pacífica do tipo de Gandhi na Índia, sendo por isto, a sua antecessora, como deixa entender o ensaísta.
Também assinalou [o autor] a revolta bem-sucedida dos escravos designada pelos árabes de «a terrível guerra dos zenjs» que se instalaram num território bem definido, organizaram um Estado com uma administração e tribunais que aplicavam a pena de talião aos prisioneiros indo até a cunhagem da sua própria moeda; e chegou a ter, obviamente, um bem organizado exército que infligiu pesadas derrotas aos árabes. Após 14 anos de existência foi primeiro asfixiado na sua interacção com os vizinhos e depois esmagado por um poderoso e organizado exército árabe.
O autor, Tidiane N’Daye, um antropólogo e economista de renome, trabalha no INSEE (Instituto Nacional de Estatística e Estudos Económicos francês), autor de livros, numerosos estudos e publicações científicas (contracapa) visa com o livro a denúncia da escravatura árabo-muçulmana que considera ter sido ocultada ao longo dos séculos e di-lo de forma explícita (cito): “Foi assim, que cruelmente se caçou, bestializou, mutilou e desonrou a dignidade humana de seres dinâmicos que só queriam viver e ser felizes. Assim, apesar das massas enormes de populações africanas importadas, só uma minoria pôde deixar uma descendência no mundo árabo-muçulmano. Era este o objectivo desde o início: evitar que se reproduzissem. É certo que o racismo, o desprezo, as condições desumanas de exploração, o infanticídio e a pratica generalizada de castração são os principais factores deste quase desaparecimento. E os raros sobreviventes que asseguraram uma descendência – essencialmente filhos de concubinas negras – hoje são discretamente marginalizadas nessas sociedades. (p.184)
Tidiane N’Diaye baseia a sua tese de genocídio, principalmente, na diminuta população negra descendente de escravos existente no mundo árabe quando comparada com a dos descendentes do tráfico transatlântico, isto é, nas Américas e Caraíbas face ao número de escravos traficados em cada das regiões. E conclui (transcrevo): “Neste sentido é difícil não qualificar este tráfico como um genocídio de povos negros através de massacres, razias sanguinárias e castrações maciças. Não deixa de ser curioso, no entanto, que haja muitos a desejar vê-lo para sempre ocultado pelo véu do esquecimento, frequentemente em nome de uma certa solidariedade religiosa, senão mesmo ideológica. É na verdade, um pacto virtual, selado entre os descendentes das vítimas e os descendentes dos carrascos, que resulta nesta negação. Semelhante pacto é virtual, mas a conspiração é bem real. Numa espécie de «síndrome de Estocolmo à africana», toda esta gente se põe de acordo para responsabilizar o Ocidente. Tudo se passa como se os descendentes das vítimas se tivessem tornado devedores, amigos e solidários dos descendentes dos carrascos, a respeito dos quais decidem nada dizer” (p. 201)
Para terminar estes apontamentos, uma curiosidade: na minha juventude surgiu nos EUA na comunidade negra, uma corrente político-religiosa em que famosos negros americanos, dos quais destaco dois que a minha memória neste momento solta – o pugilista Cassius Clay e o activista político Malcom X – se convertiam ao Islão, alegando o facto do cristianismo ser uma religião de brancos e de escravatura. Com a conversão, mudavam, consequentemente, de nome. Estes dois famosos passaram a chamar-se, respectivamente, Mohamed Ali e Malik el-Shabaz. Tudo leva a crer que não conheciam o processo de islamização do continente africano, muito anterior ao da cristianização dos europeus, nem a dimensão e natureza da escravatura árabo-muçulmano; e tão pouco relacionaram a origem e os fundadores das duas religiões: ambas oriundas do mesmo Patriarca – Abraão; e ambos – Jesus Cristo e o Profeta Maomé – semitas da mesma região – Médio Oriente.
Ao fim e ao cabo trata-se – o Tráfico negreiro Transariano e Oriental – de uma tese polémica de um assunto mal conhecido, que tem que ser estudado e tratado com a mesma atenção que se tem concentrado no Tráfico Transatlântico, eludindo o silêncio que nos leva a concluir, como diz o autor, que os descendentes das vítimas padecem da “síndrome de Estocolmo” ou, então, de uma “cumplicidade religiosa”.
Publicado em http://coral-vermelho.blogspot.com
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1055 de 16 de Fevereiro de 2022.