Num resumo muito breve direi que a narrativa tem como protagonista um menino-soldado de “10/12 anos” de idade, Birahima, assim se apresentava ele. É que a mãe lhe dizia que ele tinha dez anos, mas a tia com quem ficou após a morte da mãe, acrescentava-lhe mais dois anos à vida.
É através do olhar arguto e perspicaz desta criança narradora portadora de uma linguagem madura e já sarcástica, incomum na sua idade – criança que não teve tempo, nem direito de saber o que era a infância – que o leitor vai percorrendo a história das guerras tribais violentas e dos não menos violentos golpes de estado em três países da costa ocidental deste Continente tão massacrado pelos seus. Ora em nome próprio, ora sob disfarçados e perigosos nacionalismos a roçar o que de mais ignóbil possui o sentimento tribal.
Ora bem, Birahima, o nosso narrador, sai da aldeia à procura da tia que supostamente estaria na Libéria. A longa caminhada, revela-se cheia de ciladas, para as quais, ele tudo faz para sobreviver e assim conseguir lograr o objectivo pretendido.
Segue por intermináveis regiões, acompanhando um grande “mago,” de nome Yacoube que de certa forma o protege. Tal como Birahima, embora em versão adulta, Yacoube também quer é sobreviver às balas. Deseja agradar os senhores da guerra; obter sustento; fugir aos esquartejamentos, aos fuzilamentos e às mortes violentas que eram o dia-a-dia dos territórios percorridos por estas duas personagens.
O mago ou, o grande feiticeiro Yacoube, nos serviços que presta a diferentes chefes, vaticina-lhes quase sempre sucessos nos campos de combate, com glórias futuras e promessas de que será – de acordo com o chefe para quem trabalha na ocasião – o comandante máximo do país ou, mesmo da zona, quando se trata de extensa região rica e aurífera. Regra geral, o vaticínio saía mal. Ameaçados de morte, os dois companheiros, Yacoube e Birahima fugiam “a sete pés,” a cada logro descoberto.
Neste percurso de andarilho e bem errante, Birahima vive peripécias infernais em três países, a saber: Costa do Marfim, Serra Leoa e Libéria. Serve a vários senhores, quase todos eles comandantes das guerras intestinas. Pertence como soldado a muitos chefes tribais; participa em combates, como menino-soldado em diferentes exércitos, ao lado de crianças como ele, também meninos-soldados que matam e morrem por causas que eles desconhecem.
No fundo, só assim ele conseguiria sobreviver (a razão de ser de tudo por que passou) para se encontrar finalmente com a tia, a única pessoa que poderia cuidar dele, menino órfão... Enfim, veremos se tal sucede...
Neste romance, o leitor é confrontado lado a lado com a ficção e com a história real da década de 90, a última do século XX, dos três países mencionados em que a violência, as intrigas, as perseguições, as feitiçarias, tudo isso intrincado numa rede fortíssima de ambições desmedidas dos dirigentes no poder e, daqueles que os combatem e que querem apoderar-se-lhes do assento.
Lemos no livro, nomes reais - pois que eles estão no cerne dos conflitos - nomes como Capitão Taylor, Príncipe Jonhson, Samuel Doe, para além de outros líderes da história recente de África, promotores igualmente de muitos horrores, no espaço da narrativa onde circulam. Ora com chefes poderosos, ora como derrotados e massacrados pelos rivais.
A última parte do livro transforma-se numa autêntica crónica histórica.
A linguagem e o tom da narrativa estão conformados em humor, em ironia e em sarcasmo.
Há aparentemente, na voz do narrador, uma certa displicência humorística na arte de contar a sua história, e nota-se-lhe alguma frieza cautelosa, estudada, mas crente, na sua relação com Alá.
Afinal, considera ele que “Alá não é obrigado” a socorrer a tudo o que lhe sucede de errado na vida, enquanto menino-soldado e, muito menos, responder aos apelos constantes invocados nas orações e/ou nas bruxarias dos comandantes de uma guerra ou, de várias guerras, muito más e sem fim à vista.
E nisto reside o encanto da narrativa, a sua linguagem ricamente irónica.
Sem dúvida que o autor escolheu assim, a via menos penosa, menos “real” mais evasiva, para falar de violência e para colocar o leitor perante o drama.
– Assim realizado, a leitura do livro «Alá Não É Obrigado» é empolgante até ao desenlace do enredo.
Sobre «Alá Não É Obrigado» podemos falar em romance pícaro. Sem dúvida que isso cabe também na obra. O ardiloso, a astúcia, a velhacaria e mesmo a vilania, estão bem presentes em cada linha do livro e em moldes demasiados reais.
Para finalizar, transcrevo um trecho da apreciação crítica feita ao livro, pelo “Le Nouvel Observateur:” Uma fábula política, a um tempo divertida e feroz, destinada a figurar entre os grandes clássicos da literatura africana.”
*«Alá Não É Obrigado» edições ASA literatura, Porto, Portugal 2003.
Publicado em http://coral-vermelho.blogspot.com.
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 921 de 24 de Julho de 2019.