Lembro-me então como nos ríamos às gargalhadas quando ouvíamos os políticos locais, com ares sérios e solenes, falarem ou discursarem (por ocasião do 3 de Agosto) ora de “pindgikiti,” ora de “pindgiguitá” e ora ainda de “pindgigotá”…
Sim, tão revolucionários e tão conhecedores da gloriosa luta de independência da Guiné e de Cabo Verde, a qual, ufanamente exibiam à época! Mas quando chegava a Pidgiguiti, aí, para além de não saberem pronunciar correctamente o nome do cais, acrescentavam fantásticas e fabulosas histórias, então contadas, na rádio, nos jornais e na voz dos “melhores filhos” leiam-se: os combatentes vindos do mato e os revolucionários surgidos nas cidades.
Isto passava-se aqui nas ilhas, após o Movimento dos Capitães de Abril em Portugal.
Na mesma linha, na Guiné, e naqueles tempos – da malfadada unidade Guiné-Cabo Verde, sob a égide do Paigc – na rádio em Bissau, escutavam-se programas e entrevistas com descrições por vezes empolgadas, sobre o triste episódio.
Tudo isto também, porque os combatentes do PAIGC, vindos da Guiné profunda e, particularmente aqueles ligados à antiga Rádio Libertação, haviam trazido na sua bagagem, uma fita contendo uma espécie de teatro radiofónico que antes passariam na referida Rádio em Conackry.
Ora bem, mal chegados a Bissau em 1974, toca de difundi-lo na rádio Bissau por várias vezes.
Obviamente que houve figuras protagonistas e secundárias) completamente diabolizadas nessas – umas, reais, outras, bem efabuladas – narrações radiofónicas, sobre a revolta dos marinheiros em Bissau, há 60 anos (a 3 de Agosto de 1959) algumas delas, militares e policiais com intervenção directa nos acontecimentos, mas houve também gente, injustamente incluída.
E de entre as figuras injustamente arroladas, e várias vezes citadas no folhetim radiofónico, destaca-se a do nosso insigne estudioso etnógrafo, historiador, António Barbosa Carreira (1905-1988).
Pois é, foi uma das figuras mais diabolizadas nesse imbróglio foi precisamente António Carreira.
Apenas relembrar que em 1959 – Guiné Portuguesa – aí nesse local, o porto, o cais de Pidgiguiti, em Bissau – se terá passado um conflito laboral, sangrento e violento entre marinheiros maioritariamente da etnia mandjaca, ao serviço da Casa Gouveia, e a autoridade militar e policial, vigente em Bissau.
Ora bem, o conflito, (reivindicação dos marinheiros ao serviço daquela casa comercial) mais tarde, após a independência, ganhou novos e inventados contornos nas reconstituições feitas pelos jornalistas e demais escribas e depoentes ao serviço da nova causa; ao conectá-lo como sendo emanação directa do PAIGC.
Recordo com um rasgado sorriso, a entrevista que ouvi na rádio, desse meu patrício vulcânico (vulcânico mesmo!) nos idos anos de 1974, a tentar explicar ao Jornalista, que ele, Carreira nada tivera com o caso. A determinada altura da entrevista, perdendo um pouco a paciência com as perguntas, um pouco repetitivas que o Jornalista lhe fazia sobre um assunto que pertencera à esfera militar e policial de Bissau, o nosso Historiador; para pôr termo à irritante, e falsa acusação que queriam sobre ele fazer pender, e a maneira como o Jornalista queria conduzir a entrevista, como se de réu se tratasse, Carreira soltou uma expressão mais forte e a aparentar um “palavrão,” pois que ele não tinha paciência alguma com questões que considerava idiotas e deu fim à entrevista. Espírito frontal, directo e sem falsos rodeios, assim expressava ele a sua quase sempre, assertiva opinião.
De facto, a entrevista acabou por ser de certa forma, hilariante.
Creio que, após isso, todos, ou quase todos, mesmo aqueles que injustamente o incriminaram se aperceberam do grande erro cometido. Só que essa gente não conhece a tão bem-vinda e esperada expressão: Pedir desculpas... Sim, comete-se um erro tão grosseiro! e não há um pedido de desculpa ??...
Agora, e um pouco mais seriamente, convém situar António Carreira na Guiné portuguesa, onde fez a sua carreira de Administrador de Concelho ou de Circunscrição, no interior daquele país, então denominada Província Ultramarina. Terá chegado uma altura, deduzo, que querendo ir viver para Bissau, ou para a escolarização dos filhos possivelmente, ou mesmo, por cansaço do mato, ou razões outras, deixou a administração civil, tendo passado a ser Gerente da Casa Gouveia, empresa comercial de muito peso na então Guiné. Sobretudo na comercialização do arroz.
Mais tarde, A. Carreira foi arquivista e investigador do então denominado Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, onde fez um meritório trabalho de inventariação, catalogação e de arrumação com metodologia e muito trabalho do vasto acervo escrito aí então existente. Deixou esse precioso legado que eu vi com lágrimas nos olhos, a ser posto na rua (literalmente) em meados de 1975. Possivelmente por mãos e mentes que não sabiam ou, não avaliaram o valor daquilo que estavam a retirar das prateleiras e colocado no chão (sem cuidado) do passeio em frente à porta do aludido Centro, na altura transformado em outro serviço.
Pois bem, continuando, A. Carreira, imagino eu, que terá sido também desses tempos, enquanto ele foi responsável do Centro de Estudos em Bissau – possivelmente um tempo de estudo e de reflexão – a elaboração do seu projecto, mais tarde obras de referência sobre algumas das muitas etnias guineenses, sobre o trânsito esclavagista da chamada costa da Guiné, as migrações e, a formação da sociedade cabo-verdiana. Tudo isto versado em livros, que se tornaram de consulta fundamental para as teses e para trabalhos académicos.
António Carreira, como quadro da Administração Civil da Guiné Portuguesa, Carreira pôde frequentar a antiga Escola Colonial em Lisboa, mais tarde, nos finais dos anos 50, tornado Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas Ultramarinas.
Fundamentalmente autodidacta, estudioso empenhado, prosseguiu A. Carreira, ele próprio, a sua formação enquanto etnógrafo e historiador. Simplesmente espantoso!
Carreira também foi orientador de teses de muitos formandos e académicos, mestrados e doutoramentos, daqueles que buscavam na História das antigas colónias portuguesas, temas para os seus trabalhos de fim de curso.
Nos anos 70, do séc. XX, A. Carreira encontra-se em Portugal, onde, a convite de Adriano Moreira, dá aulas no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas Ultramarinas, antigo ISCPU.
Para nós uma enorme admiração! Não é? Mas nestas ilhas havia gente assim, no antigamente da vida... Abro aqui um pequeno parêntesis para estabelecer uma comparação, embora desfasada em tempo, e lembrar casos similares; de Guilherme Ernesto, de Guilherme Dantas, de Eugénio Tavares, de Januário Leite, de José Lopes e de tantos e tantos outros que deixaram um legado escrito de incontestável valor para a Literatura e para a História de Cabo Verde e que não possuíam qualquer diploma de estudos superiores! Eles é que assentaram e fundaram a sua vasta cultura – através de leituras e de estudos aturados – nas palavras de Arnaldo França, nas suas «Notas sobre poesia e ficção cabo-verdiana» 1962: “... um aceno de simpatia aqueles que sem um liceu, sem jornais literários, sem rádio, sem cinema, sem viagens à metrópole, deram em seu tempo, uma nota de dignidade e de elevação espiritual à apagada tristeza reinante na pequenez dos agregados urbanos das ilhas.” Fim de transcrição. Eles criaram o seu próprio saber e o seu invulgar engenho para o difundir e o perpetuar. Fecho o parêntese.
E retomo A. Carreira mais actual, autor de obra importante na historiografia cabo-verdiana, área na qual deixou um vasto legado escrito em artigos, ensaios e livros. A sua obra mais conhecida e citada é: «Cabo Verde – Formação e Extinção de uma sociedade escravocrata (1460-1878).»
Nasceu em São Filipe, ilha do Fogo em 1905. Filho de António Carreira e Isaura Barbosa. Casou com Cármen de Medina Carreira, natural da ilha Brava. Faleceu em Lisboa, Portugal, em 1988. Os restos mortais foram trasladados para a sua ilha natal em 1995.
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 905 de 03 de Abril de 2019.