“Apenas um búzio, Daniel, para uma vez mais e para sempre, aí desse lado, te ficares a ouvir o mar longínquo da tua infância adormecida”. – Maria Rosa Colaço, Abril.1964
Teu sonho tem a forma de um navio,
inesperadamente enraizado
entre pólipos, limos, rapazio
do cais abandonado.
Para a viagem que não há, arvora
o negro pavilhão das aventuras.
– Vê-lo-ás partir um dia, no remanso da aurora,
sereno recendo o vento nas amuras.
Onde irá naufragar? A que praia distante
irá fazer aguada num domingo de sol?
A que estranha paisagem a brisa do levante
o levará, talvez? A que pérfido atol?
(Entanto, só navio
moldura da sala,
é quase o desafio
de quem conhece e cala.)
– Daniel Filipe, “Sala de estar”, in A Ilha e a Solidão, 1957
Quando crianças diziam-nos que, encostando um búzio ao ouvido, podíamos escutar o som do mar. Ficávamos fascinados com esse som e pensávamos como era isso possível.
Mais tarde viríamos a saber que o que escutamos quando aproximamos um búzio do nosso ouvido é o som do nosso fluxo sanguíneo a circular nos vasos capilares próximos do ouvido. O búzio, com a forma de uma espécie de câmara fechada, maximiza o som do fluxo sanguíneo e torna-o audível. Se fizermos um teste com qualquer outro objecto com idênticas características iremos ouvir o “som do mar”.
Búzio-Tritão
O jogo de búzios é uma das artes divinatórias utilizadas nas religiões tradicionais africanas para consultar o futuro. Consiste no arremesso de um conjunto de 16 búzios sobre uma “mesa” previamente preparada e na análise da configuração que os búzios adoptam ao cair sobre ela.
O menino que existe em mim lançou os búzios e procurou ouvir o som do mar longínquo e evocar o Poeta-Tritão.
Foi assim que cheguei ao Charonia tritonis, conhecido pelos nomes comuns de tritão (com referência à mitologia grega, na qual o deus Tritão, filho de Posidão, deus dos mares, era geralmente representado segurando uma grande concha de búzio) ou búzio-trombeta, uma espécie de gastrópode marinho de grandes dimensões cuja espécie está restrita às regiões tropicais e subtropicais de todos os oceanos.
Daniel Damásio Ascensão Filipe nasceu na ilha da Boa Vista (Sal-Rei, 11.Dezembro.1925 – Lisboa, 6.Abril.1964), de onde saiu ainda criança – com cerca de 2 anos de idade – levado pelo pai português, aí deportado, o Coronel médico Gonçalo Monteiro Filipe (a mãe, Rita Maria Ascensão, na altura com 34 anos, era natural da Ilha das Dunas).
Em Portugal fez os estudos liceais tendo sido funcionário público, jornalista, publicitário, poeta e ficcionista. Trabalhou na Agência-Geral do Ultramar e na área jornalística como co-director dos cadernos Notícias do Bloqueio, colaborador assíduo da revista Távola Redonda e do jornal Diário Ilustrado, e também realizador, na Emissora Nacional, do programa literário “Voz do Império”. Combateu a ditadura salazarista, tendo sido perseguido e torturado pela PIDE.
Sons do Mar
Sendo menino nascido na orela d’mar, a obra poética e romanesca de Daniel Filipe tem a reminiscência e os sons do mar das ilhas – Missiva (1946), Marinheiro em Terra (1949), O Viageiro Solitário (1951), Recado para a Amiga Distante (1956), A Ilha e a Solidão (Prémio Camilo Pessanha sob o pseudónimo Raymundo Soares, 1957), O Manuscrito na Garrafa (romance proibido pela Censura, 1960), A Invenção do Amor e Outros Poemas (1961), Pátria, Lugar de Exílio (1963) – talvez precisamente porque retirado dessa realidade muito cedo da sua infância.
Daniel Filipe faz parte da história da Literatura Portuguesa do século XX. Nem portugueses nem cabo-verdianos podem prescindir da sua memória. Ela pertence aos dois países – Cabo Verde porque aqui é a sua terra-mãe e permeia toda a sua obra; Portugal porque ali viveu, sofreu, amou e escreveu a sua poesia.
Apenas um Búzio
A neta Sara Filipe, que cedeu as fotos aqui publicadas, informou-nos que a bisavó, Rita Maria Ascensão, anos mais tarde foi para Portugal com os filhos e lá faleceu aos 97 anos. Curiosamente, Daniel Filipe nunca voltou à sua ilha natal, mas viveu sempre a ela ligado –
Se me recordo em bruma e mágoa,/ à solidão da ilha trago-a/ dentro de mim petrificada(A Ilha e a Solidão, 1957).
Daniel Filipe deixou três filhos, Daniel, João e Luís, hoje com uma idade compreendida entre os 60 e os 68 anos.
Há cerca de quinze anos os irmãos Filipe fizeram uma viagem conjunta a Cabo Verde para conhecer a terra do pai e da avó.
A fechar, um extracto da homenagem sentida da escritora e jornalista portuguesa Maria Rosa Colaço (1935 – 2004), publicada no Boletim Cabo Verde, número de Abril-Junho de 1964:
[…] em vez de lágrimas, venho trazer um búzio para junto do teu nome.
Apenas um búzio, Daniel, para uma vez mais e para sempre, aí desse lado, te ficares a ouvir o mar longínquo da tua infância adormecida.
Apenas um búzio, para junto do teu nome.
Romance de Tomasinho-Cara-Feia
Farto de sol e de areia,
que é o mais que a terra dá,
Tomasinho-Cara-Feia
vai prá pesca da baleia.
Quem sabe se tornará?
Torne ou não torne, que tem?
Vai cumprir o seu destino.
Só nhá Fortuna, a mãe,
que é velha e não tem ninguém, chora pelo seu menino.
Torne ou não torne, que importa?
Vai ser igualzinho ao avô.
Não volta a bater-me à porta;
deixou para sempre a horta,
que a longa seca matou.
Tomasinho-Cara-Feia
(outro nome, quem lho dá?)
foi prá pesca da baleia.
– E nunca mais voltará.
Morna
É já saudade a vela, além.
Serena, a música esvoaça
na tarde calma, plúmbea, baça,
onde a tristeza se contém.
Os pares deslizam embrulhados
de sonhos em dobras inefáveis.
(Ó deuses lúbricos, ousáveis
erguer, então, na tarde morta
a eterna ronda de pecados
que ia bater de porta em porta!)
E ao ritmo túmido do canto
na solidão rubra da messe,
deixo correr o sal e o pranto
– subtil e magoado encanto
que o rosto núbil me envelhece.
in A Ilha e a Solidão, 1957
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 869 de 25 de Julho de 2018.