Para além do mais trata-se de um processo que vem decorrendo ao longo de anos, com a finalidade por vezes bem expressa em palavras, actos e também em omissões de responsáveis, todos eles, numa tentativa explícita ou implícita de aniquilar aqui nas Ilhas a Língua portuguesa entre nós.
Para mal dos nossos pecados, vimos a isso assistindo, com verdadeira dor de alma e terá culminado recentemente no triste episódio com Angola, aquando do alegado envio, em regime de cooperação, de professores cabo-verdianos.
As redes sociais demonstraram à saciedade, em alguns casos, de forma cruel e ofensiva − sem deixar de ser verdade − a forma como muitos angolanos classificaram e repudiaram essa tentativa de cooperação.
Comentando com algumas antigas colegas o triste acontecido, afirmei também convicta de que no nosso tempo de professores no activo, e bem antes de nós, (os nossos professores cabo-verdianos) tais comentários da parte de angolanos seriam impensáveis, porquanto profissionais do ensino, tínhamos orgulho, dedicação e empenho, não só em bem expressar a língua veicular do sistema da educação, mas também em bem saber, o específico e o didáctico da disciplina que ministrávamos.
Infelizmente, hoje em dia não se verificam, como regra, estes pressupostos culturais e profissionais no nosso meio académico/escolar.
Excepções? Sim, vamos encontrando. Apenas isso...
Enfim, tentei compreender o ponto de vista dos angolanos (falantes de português) e no meio disso verifiquei também o nosso retrocesso... tempos outros.
Narro aqui alguns pequenos casos, curiosamente demonstrativos do que vem acontecendo.
Aqui há tempos fui à Cidade Velha, com um casal amigo, que visitava pela primeira vez estas ilhas. Chegados ao Forte São Filipe, tratei de comprar os bilhetes de acesso ao seu interior. A jovem que me atendeu, vendeu os 3 bilhetes por 500$00, (não me pediu identificação) quando, para o nacional, o preço é de 300$00. E para o estrangeiro é que é de 500$00. Reclamei de imediato o preço do meu bilhete e, eis que, para o meu espanto, retorquiu-me ela: “a senhora falou em português, pensei que fosse turista também” (sic). Claro que ela foi logo ali confrontada com a questão que levantei e que foi a seguinte: se ela estava ao serviço do património cultural era porque no mínimo, fizera a escolarização básica, e se assim foi, os livros em que ela havia estudado, escritos estavam em língua portuguesa e que os professores na sala de aula, de certeza que usaram a língua de escolarização. Se ela na escola considerou a língua veicular, a portuguesa, língua de estudo que a permitiu estar onde estava; ou se ela a considerou então, apenas língua de turistas que nos visitam? E se ela não achava que o português era também a nossa língua?... enfim, não me calava tal era a minha indignação! Se calhar a pobre funcionária do Forte da Cidade Velha, nem tem nisso grande culpa. A reacção dela mais não foi do que produto do ambiente que se gerou entre nós e, para mal dos nossos pecados, à volta da Língua portuguesa.
Outro facto, quiçá mais grave dado o nível dos protagonistas e o enquadramento da ocorrência: estávamos num programa radiofónico comemorativo do Dia da Língua Portuguesa (5 de Maio) a convite do seu produtor/realizador. Éramos uma meia dúzia de participantes avisados e sabidos de antemão, sobre o conteúdo do painel que visava abordar a LP sob vários aspectos da sua expansão, da sua globalização e, naturalmente, da sua pertença e estádio em Cabo Verde.
Ora bem, tudo claro e, previamente definido. O tema era a Língua da CPLP (Comunidade de Países de Língua Portuguesa). Não é que o primeiro participante interrogado pelo Jornalista, abriu o debate dizendo: “eu não venho aqui a este programa para falar da Língua portuguesa” (??!) Reparem bem neste “estratagema”, “fuga” ou “deriva” que já se tornou comum e recorrente entre gente dita letrada das ilhas que deliberadamente foge a discutir, a debater, a situação actual, da Língua portuguesa nas escolas, entre os falantes, nas instituições académicas, entre outros meios em que circulava a Língua, dita segunda. Fazem-no já de forma sistemática, (até parece “serviços combinados”) para lançar confusão (Claro! que felizmente, há excepções no meio desta balbúrdia).
O mais das vezes, alguns querem logo debater questões sobre o crioulo versus português − quando o foco é o português − que nem ao caso vinham, como era o conteúdo do painel radiofónico referido. Mas isto tudo, apenas e tão somente, com o objectivo de fugir à questão, que é: não se debater o português, entre nós.
Repare-se que me estou a referir aos nossos considerados intelectuais! Fantástico!
E ainda mais um caso, e este também ligeiramente bizarro: recebo um telefonema de uma jovem inquiridora ao serviço de uma empresa de sondagens. De uma maneira geral, disponibilizo-me sempre para responder aos inquéritos com que sou confrontada, pois que, para além de outras razões, os efeitos estatísticos visados serão provavelmente úteis.
Pois bem, iniciada a conversa em crioulo, da parte dela, eu respondi em português que uso naturalmente. E quando ela chega à parte das perguntas do inquérito – note-se: escritas em português – ela estava a ler o documento e a traduzir para o Crioulo, pedi licença para a interromper e disse-lhe: “minha senhora, está a ler o documento escrito em língua portuguesa? (o que ela confirmou) Então? eu estou a responder-lhe em português, não acha escusado este esforço todo de tradução para esta inquirida?...” Bom, aí ela mudou o veículo de comunicação.
Podem-me dizer que neste caso, poderá ter falhado também da parte da jovem, minha interlocutora, o tal raciocínio lógico e dedutivo, cujo treino está hoje em dia tão ausente e cada vez mais a rarear no processo de escolarização dos nossos estudantes. Bem podia ter sido o caso.
Enfim, não sairíamos daqui. Por mais que se queira considerar episódicos os factos narrados não se consegue dada a sua frequência e dada a seriedade e a complexidade da matéria, que os torna gritantes no momento actual, no nosso panorama linguístico.
Urge, e já é mais do que tempo, que as mais altas instâncias governativas, com especial realce para o sector da educação, chamem a si, tomem entre mãos este problema muito importante que é o da Língua portuguesa em Cabo Verde.
Faço-me entender, a situação, o estado actual da Língua portuguesa em Cabo Verde.
Que seja lançado um debate público sobre o que está escandalosamente a acontecer: o aniquilamento, a tentativa de fazer desaparecer do mapa linguístico das ilhas a Língua portuguesa e tudo isto, com o silêncio e, quem sabe! a cumplicidade de todos os responsáveis que disso estão cientes e nada vêm fazendo para inverter a situação.
Estamos a desbaratar, um autêntico tesouro de séculos, um legado soberbo, uma riqueza e um penhor do nosso desenvolvimento cognitivo, do nosso progresso intelectual e da nossa cidadania.
Trata-se tão simplesmente da língua mais antiga e igualmente nossa − ao lado do crioulo − que estas ilhas escutaram e nela se aculturaram e se desenvolveram.
É notícia proclamada, que Cabo Verde ocupará brevemente a presidência rotativa, é certo, da CPLP (Comunidade de Países de Língua portuguesa).
Sabemos nós, que o “cimento” da comunidade é exactamente a Língua portuguesa, a sua prática, a sua defesa e a sua permanente expansão.
Quando subirmos à tribuna (em Julho próximo) seremos capazes de − em sã consciência − afirmar que a Língua portuguesa está de boa saúde em Cabo Verde?
Está-se a cometer um verdadeiro crime cultural! (sem aspas).
Felizmente, o nosso Presidente da República é alguém empenhado na defesa na preservação e na expansão da língua comum entre nós. Creio que o mesmo, ou similar, poderei dizer quanto ao Ministro dos Negócios Estrangeiros.
Citei estas duas entidades, pois serão elas as anfitriãs da próxima Cimeira no Sal.
Ainda bem que assim é. Costuma-se dizer que os bons exemplos devem vir de cima. Espero que deles venha mais incentivo à causa da Língua comum, pois não gostaria de terminar este escrito, e relembrar o que aconteceu ao Haiti, (este mau exemplo devia servir-nos de reflexão) quando decidiu banir a Língua francesa do seu universo linguístico de comunicação. Claro! Que ficou muito mais pobre.
No nosso caso, um país de emigração, bem pequeno, sem riqueza, e de grande dependência da comunidade internacional com destaque para a comunidade europeia que vem ajudando e apoiando o nosso desenvolvimento, fecharmo-nos na concha do crioulo, desprezando o português, é caminho certo para aquilo que infelizmente aconteceu no Haiti, quando excluiu o francês.
Publicado em coral-vermelho.blogspot.com
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 855 de 18 de Abril de 2018.